Milly Lacombe

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Documentário faz o que Flamengo deveria ter feito: honrar a vida dos mortos

Arthur Vinicius, Pablo Henrique, Rykelmo Viana, Christian Esmério, Gedson Santos, Bernardo Pisetta, Jorge Eduardo, Vitor Isaías, Samuel Thomas, Athila Paixão.

Esses são os nomes dos jovens que morreram queimados no Ninho do Urubu no dia 6 de fevereiro de 2019. Tinham entre 14 e 17 anos. Suas vidas estão contadas no documentário "O Ninho: Futebol e Tragédia", que a Netflix produziu com apoio do UOL e com base em reportagens do Portal. O documentário está disponível a partir dessa quinta-feira, 14 de março.

"Não é fácil falar para vocês", disse o presidente Rodolfo Landim no primeiro pronunciamento oficial depois da tragédia. Um pronunciamento de trinta segundos com o vice de futebol, Marcos Braz, colado em seu cangote.

Estava difícil para o presidente falar? Ele estava sofrendo? Pelo que exatamente? Pela tragédia ou pela crise que teria que começar a gerir?

O documentário responde.

Sem alvará, com puxadinho no meio de CT milionário, fios expostos, fios sem conduíte, gambiarras elétricas, crianças dormindo amontoadas em um container subdividido em "quartos". O container improvisado num estacionamento tinha apenas uma porta e janelas com grades. Era, se levarmos em conta todas as irregularidades das instalações, uma arapuca.

Tudo bastante detalhado em "O Ninho". Os riscos a respeito das irregularidades foram comunicados à diretoria do Flamengo. Por email. A resposta, em resumo, dizia: deixa assim.

"O senhor estava dormindo na hora do incêndio?". Essa foi a primeira pergunta feita pela polícia ao segurança Benedito Ferreira, que tempos depois foi demitido pelo clube e que vive com sequelas psicológicas até hoje. Seu depoimento no documentário é dilacerante não apenas pelo conteúdo mas porque podemos perceber as sequelas.

O senhor estava dormindo? Estava acordado? Fez seu trabalho ou tem responsabilidade na morte dessas crianças? É isso o que está escondido na pergunta "o senhor estava dormindo?". Quem não morreu queimado morreu por desumanidade moral.

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No mesmo ano em que ganharia tudo e conquistaria ainda mais corações, com um time cheio de craques e jogando por mágica, o Flamengo começou a barganha com a vida das vítimas: queria pagar menos.

"Não podemos pagar valor fora de proporção", dizia Landim. Qual é a proporção? Quanto vale uma vida? Quem estabelece esse valor? Landim não apareceu na reunião de negociação com a família no MP. Mandou o VP jurídico com os advogados.

O Flamengo que começou chamando a tragédia de tragédia e cujo presidente dizia não conseguir falar por estar muito abalado, passou a tratar as famílias como inimigas. "A família pode buscar um advogado e entrar na justiça contra o Flamengo", disse no contexto em que a revolta das famílias ficava evidente.

A declaração é perversa. Estamos falando do clube mais rico do Brasil contra pessoas periféricas. Está exposto aí nosso sistema de justiça. Um sistema branco e bilionário contra pessoas negras e pobres. A família pode sim buscar um advogado para brigar contra o Flamengo. Como elas podem passar férias em Paris, podem mandar seus filhos esquiar em Aspen e treinar com especialistas na Suíça. Podem? Bem, não tem ninguém amarrando suas mãos, elas não estão proibidas pelo Estado. Mas certamente estão pelo sistema econômico.

No dia em que a tragédia completou um ano, as famílias foram ao Ninho para fazer uma homenagem. Todas, menos uma, foram barradas por não terem solicitado entrada prévia. Não puderam entrar para rezar no local da tragédia.

Landim não apareceu na CPI instalada pela Alerj. O Flamengo não se importa, como o documentário deixa evidente.

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Mas a torcida se importa. Fez mural, canta em homenagem aos garotos em todo o minuto 10 das partidas.

Dos 16 atletas que sobreviveram ao incêndio apenas três seguem no clube.

Tudo está no documentário, que dramatizou as cenas da tragédia. Depoimentos fortes e de tristeza devastadora. O Flamengo nunca fez um espaço de memória para esses jovens. Nunca contou suas histórias. Nunca celebrou suas vidas. O documentário faz isso. Conhecemos um pouco de seus sonhos, de seus jeitos, manias, rotina. É assim que você honra uma vida. Você conta sua história.

O que é uma diretoria vencedora? A que ganha tudo ou a que trata pessoas como pessoas a despeito do que elas tenham a oferecer? A que levanta taças ou a que acolhe a dor dos seus? A que dá a volta olímpica com o time ou a que reconhece o sofrimento do outro? A que se implica na tragédia ou a que contrata um escritório que administra crises para negociar com o dilaceramento alheio?

Vendo o documentário me parece que, mais do que dinheiro, as famílias queriam reconhecimento, conforto e amparo. Um dos pais fica emocionado com o presente que recebeu do Fluminense, seu time do coração: uma camisa com o nome do filho Bernardo e uma carta honrando sua vida e passagem. "O Flamengo nunca fez isso", ele diz emocionado. As famílias queriam perceber que o Flamengo se importava com a vida de seus filhos. Não era necessariamente pela indenização, era por qualquer vestígio de carinho.

Arthur Vinicius, Pablo Henrique, Rykelmo Viana, Christian Esmério, Gedson Santos, Bernardo Pisetta, Jorge Eduardo, Vitor Isaías, Samuel Thomas, Athila Paixão. O Flamengo não é a sua diretoria, ele é a sua torcida e os jovens que largam tudo para vestir essa camisa e tentar seguir um sonho.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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