Milly Lacombe

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Sem se perceber morta esquerda não tem como renascer

Um interessante debate foi acidentalmente proposto pelo professor Vladimir Safatle recentemente: o da morte da esquerda. Em entrevista à Folha sobre seu mais recente livro, Alfabeto das Colisões, ele disse que a esquerda morreu. E embora ele diga e elabore as causas desse falecimento há quatro anos, dessa vez as pessoas não gostaram.

Artigos foram feitos em resposta, alguns com bons pontos e chamando à reflexão. Em comum, apenas uma coisa: o debate na chave da masculinidade. Homens dialogando.

Muito motivada por esse aspecto, quero meter aqui minha colher nesse caldeirão começando com um spoiler: concordo com Safatle.

Acho os argumentos levantados por Safatle absolutamente sólidos. A política foi para os extremos, o centro hoje é apenas um gestor de crise que pende para a extrema-direita sempre que chamado ao palco, só existe um extremo, o da direita, já que a esquerda optou por não caminhar para a extremidade que lhe pertence, o capitalismo não pode ser gerenciado dado que há décadas toda gerência de crise serve como aprofundamento da mesma e, mais do que uma esquerda que não sabe se comunicar, o que temos é uma esquerda que não tem mais o que dizer.

Uma esquerda que não fala em voz alta que a crise está para o capitalismo assim como o oxigênio para o fogo e que vocaliza aberrações como capitalismo verde, capitalismo cor-de-rosa, capitalismo sustentável, capitalismo inclusivo, capitalismo ecológico etc etc etc viva não me parece estar.

Uma esquerda que atua defendendo as instituições contra uma extrema-direita que pelo menos teve a inteligência de perceber que a única relação entre capitalismo e democracia é a contradição e que, com isso em mente, saiu às ruas defendendo esse violento modelo de vida, suas políticas, sua agenda, seus métodos mesmo que, para isso, precise mandar às favas o teatro da democracia.

Num mundo devastado, é o salve-se quem puder. Olhe apenas para você, confie apenas em você, proteja sua família, desacredite das instituições e acelere. É você contra a rapa. É um discurso que engaja porque as pessoas se percebem des-representadas por uma plutocracia fantasiada de democracia. Elas aceitam esse extremismo violento em nome de alguma possibilidade de vida nem que para isso precisem enxergar o outro, qualquer outro, como inimigo. O fascismo sempre foi a válvula da panela de pressão do capitalismo.

Recomendo a leitura da entrevista de Safatle assim como o posterior texto que ele escrever sobre as críticas que recebeu. E se tiverem que ler apenas um dos textos que dialogam com suas ideias leiam o de Celso Rocha de Barros.

Gostaria de esmiuçar alguns pontos sobre a falta de discurso da esquerda que confirmaria sua morte: quem não tem o que dizer está irremediavelmente morto.

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Antes de ir aos pontos quero dizer que eu sei que existem movimentos sociais atuantes, importantes e transformadores que estão agora mesmo fazendo suas lutas. Eu sei que há grupos organizados que nunca desistiram da prática. O debate não é sobre as dimensões de uma esquerda que tenta cavar seu espaço. É sobre a falta de coesão e desorganização do discurso, sobre o medo de enfrentar algumas pautas que deveriam ser básicas e fundamentais, sobre uma esquerda que capitulou ao protocolo das instituições.

Seria exagero, então, anunciá-la como morta? Talvez. Mas seria um exagero tático e estratégico que só poderia incomodar aqueles que acham que a morte é definitiva. Não é. Escrevi um romance inteiro baseado nessa premissa: "O Ano em que Morri em Nova York". Mortes são, também, simbólicas. Morremos e renascemos muitas vezes em vida. Morrer não é o fim; é apenas a chance de se reencontrar.

Um caso concreto do que quero dizer sobre a morte da esquerda: Aborto.

Uma esquerda que tem medo da palavra e da pauta está desenganada na UTI. Não se fala sobre políticas reprodutivas, creches públicas, educação sexual. São temas proibidos. Quando alguém ousa pronunciar tais palavras os fantasmas da esquerda aparecem para exigir silêncio. Nada disso importa agora. Vamos nos concentrar no que importa, que é impedir a extrema-direita de ganhar ou voltar. Foco, por favor.

No máximo, o que a esquerda consegue organizar a respeito de aborto é a luta pela manutenção da lei vigente: pode em caso de estupro. Não nos basta. A pauta é aborto legal e gratuito. Não apenas legal: gratuito também. Menos do que isso não nos serve. Esse é o extremo que deveria estar sendo ocupado pela esquerda. Essa é a batalha a ser travada sem ponderações ou pudores. Vamos perder? Sim, verdade. Mas não entramos numa luta apenas para vencer; entramos porque é o que precisamos fazer. Perderemos duas, três, dez vezes. E, nesse caminho, estarmos pautando, debatendo, elaborando. Vai chegar o dia em que venceremos. Sem ser pautado, nada pode ser conquistado.

Sobre a luta ser organizada majoritariamente para evitar que a extrema-direita vença e volte: a extrema-direita segue ganhando no engajamento, nas ruas e na comunicação e pode voltar ainda pior, como estamos vendo acontecer nos Estados Unidos. Os fantasmas da esquerda não percebem. Querem uma luta sem identidade, uma luta de conciliações com o centro, uma luta despida de radicalização.

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Identitarismo virou palavrão.

Eu gostaria de saber qual luta escapa da identidade. A de Lula e dos seus não escapa. A de Bolsonaro e dos seus tem pelo menos o mérito de dizer o que é: homens, com homens, por homens.

Temos apenas, com uma exceção, homens no STF, dois deles colocados lá em tempos recentes por Lula. Homem é uma identidade ainda que a informação possa surpreender alguns.

Esses homens de beca acabam de negar a casais homoafetivos a licença-maternidade para quem não pariu ou quem não é o cuidador primordial. É um entendimento de família que em nada deixa a desejar ao da extrema direita. Lula colaborou para isso. São sinais de uma esquerda que, quando pulsa na chave da identidade, pode ate pender para o lado oposto.

Lula disse recentemente que Robinho, condenado por estupro, deveria ser preso. Parece uma declaração alinhada à luta feminista. Mas é um alinhamento para inglês ver. Se Lula entendesse a luta feminista como central teria em seu grupo de conselheiros algumas feministas e não teria montado um executivo majoritariamente masculino, muito menos indicado dois homens para o STF. Lula não liga para o feminismo. Não como uma pessoa de esquerda deveria ligar.

O discurso de Lula é pela independência financeira da mulher para que ela passar comprar batom. Lula está preso a signos de feminilidade que uma esquerda viva e pulsante deveria rechaçar. Até um extremista de direita poderia concordar com a declaração de Lula sobre independência e batom.

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Querem ver a morte da esquerda de perto: tentem pautar aborto e dissolução do modelo tradicional de família apenas entre esquerdistas. Falem em não-monogamia. É uma gritaria que deixaria bolsonaristas orgulhosos. Uma gritaria que desdenha das violências contra mulheres e crianças contidas dentro desse núcleo hierárquico que entendemos como família e casamento.

Outro dia elogiei a atitude de membros da Gaviões da Fiel que impediram a entrada de manifestantes de inclinações nazi-fascistas em um vagão de metrô em São Paulo. Houve gente de esquerda que criticasse o elogio. Você defende a violência?, queriam saber. Ainda que as imagens não tivessem violência, apenas um grupo de fortões barrando a porta do metrô e impedindo velhinhos de inclinações nazi-fascistas de entrarem no vagão. Eu gostaria de saber em que momento passou a ser aceitável defender que pessoas possam circular livremente para irem às ruas apoiar tortura e estupro. Porque o homem que essa gente estava indo aplaudir é o mesmo que faz apologia ao estupro.

Uma esquerda que tem medo de seu extremo está sim morta. Uma esquerda que não entende pautas identitárias por seu caráter universalista está morta. Uma esquerda que decidiu que não quer nem revolução nem reforma está morta. Uma esquerda que aceita passivamente que a linguagem política seja aquela criada pela extrema direita está morta. Uma esquerda que se nega a ser atualizada na cartilha do feminismo contra-colonial está morta. E, sem se perceber morta, não há como renascer.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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