O que queremos dos homens?
A pergunta psicanalítica clássica sempre foi "o que querem as mulheres?". Teses, dissertações, ensaios e colóquios investigavam o que insistiam ser um grande mistério. Tudo feito por homens. Durante séculos não ocorreu a eles deixar que nós respondêssemos.
A resposta, aliás, é simples para a pergunta freudiana: queremos sobreviver, literal e simbolicamente.
Sobreviver como, você pode se perguntar. E eu responderia: Queremos ter agência sobre nossos corpos, queremos saber que não seremos abusadas dentro de nossas casas, no transporte público, nos bares, nos escritórios, nas mesas cirúrgicas e nos consultórios. Queremos ser tratadas como sujeito e não como objeto, e essa parte inclui divisão do trabalho do cuidado, do doméstico, salários iguais ao dos homens quando exercemos as mesmas funções e sexo de qualidade. Em resumo, é isso.
O que queremos é bastante claro. Mas como chegar lá numa sociedade erguida com o mórbido cimento do machismo e da misoginia?
A prática do feminismo nos trouxe até esse que parece ser o momento mais vibrante da luta por emancipação. Não estaríamos aqui sem nossas antepassadas, sem a batalha de todas as que vieram antes, sem a martirização de tantas, sem a coragem de milhões. Eram nossas mães e avós. Nossas ancestrais, nossas irmãs. Queimadas, sufocadas, caladas. Mulheres que, mesmo em um mundo ainda mais violento, não desistiram.
Agora, colocamos os pés num momento histórico no qual os abusos sobre nossos corpos são denunciados como nunca foram. Muitas, movidas por uma rede de apoio inédita, encontram forças para falar, optando pela trilha perversa dos processos judiciais intermináveis, mesmo sabendo que seremos colocadas no banco dos réus e, no final, poderemos ver o predador sair ileso.
Estamos mais fortes e unidas do que jamais fomos; a luta se aprofunda mostrando toda sua potência e complexidade.
Nessa fase, muitos aliados começam a chegar. Homens que, talvez apenas recentemente, perceberam do que estamos falando afinal. Homens que se mostram indignados com a realidade que hoje entendem e que até ontem não viam. Homens que revisam suas vidas, encaram seu passado e buscam, mesmo que em um pacto silencioso com eles mesmos, se implicar e se redimir.
Esses homens são também nossos pais, irmãos, tios, avôs, amigos. Só eles sabem o que fizeram e do que se arrependem.
Nesse momento, mais do que em outros, precisamos de aliados porque o mesmo sistema que nos estupra a cada oito minutos (em números muito sub-notificados, é bem pior do que isso) é aquele que faz com que alguns só consigam escutar a voz de um outro homem.
Semana passada, Cuca, treinador do Athletico Paranaense, fez um depoimento que riscou o chão da luta feminista dentro do futebol. Pela primeira vez um profissional da ativa se posicionou contra a violência de gênero e chamou colegas à luz dos fatos. Cuca teve recentemente sua sentença anulada pela justiça Suíça num caso de envolvimento em estupro. O episódio é conhecido. O que não sabíamos é que Cuca estava, pela primeira vez em três décadas, em processo de rever sua posição no mundo.
O que o fez mudar de ideia?
A luta feminista.
Nosso pranto, nossos apelos, nossa coragem, nossa união, nossas vozes. Cuca escutou; parece disposto a se transformar e, nesse processo, transformar outros homens. Cuca, treinador de ponta e ídolo de tantos, pode ser um acelerador da luta. Pode levar, como nunca antes, a pauta para dentro dos CTs, das concentrações, dos estádios.
Se fizer o que está disposto a fazer, se de fato movimentar as estruturas para adquirir letramento e convocar a classe futebolística a lutar contra a violência de gênero, entrará para a história como pioneiro. É bastante coisa eu acho.
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Quero receberMas é justo que ele seja celebrado?
Para responder precisamos antes perceber que se o mundo fosse lugar decente um texto como esse não precisaria ser escrito. O que temos é um mundo violento contra mulheres, construído sobre bases machistas e misóginas, sempre disposto a perdoar e enaltecer homens. A luta se dá dentro desse território.
Estamos diante de uma verdade inescapável: se Cuca seguir pelo caminho que parece querer trilhar vai limpar sua barra de forma grandiosa.
Eu me importo?
Sinceramente, não me importo.
O que quero é uma sociedade onde minhas sobrinhas possam existir com a paz que eu nunca tive. Quero a certeza de que elas não serão abusadas pelo chefe, estupradas pelo namorado, assediadas pelo médico. Quero que elas ganhem a mesma coisa que seus colegas que ocupam cargos semelhantes. Que não precisem cuidar sozinhas do lar. Que não recaia exclusivamente sobre elas o trabalho do cuidado. Que não se olhem no espelho e julguem seus corpos todo santo dia de suas vidas. Que possam dançar livremente dentro de uma boate. Que não achem que maternidade é obrigação, devoção e destino. Que saibam que podem envelhecer. Que não se enxerguem frágeis. Que não se subestimem. Que não sejam interrompidas. Que não sejam espremidas.
Se o custo da emancipação também passa por ver a barra de antigos algozes-transformados-em-aliados ser limpa, que assim seja.
Escutei muita gente argumentando que Cuca fez o que tinha que fazer, foi bom, mas não merece elogios. Eu, honestamente, acredito que esse seja um lugar muito pequeno para acomodar uma luta tão imensa.
Concordo que todos os elogios devam ser reservados às mulheres que estão nessa jornada há tanto tempo, recebendo balas de todos os lados, sendo humilhadas, diminuídas, reprimidas, silenciadas, ridicularizadas. Muitas de nós ficaram pelo caminho. Como me disse uma vez a antropóloga Paola Lins: só se deixa um legado sobre destroços de si mesma. É penoso, é exaustivo e, por vezes, muitas e muitas vezes, desesperador.
Mas será que é inteligente tratar a chegada de improváveis aliados desse modo tão irredutível? Será que não caberia um reconhecimento pela chegada? Não acredito que seja o momento de adotarmos posições tão fixas.
Eu preferiria não precisar pensar em tática e estratégia para lutar. Preferiria nem precisar lutar. Mas, se estamos nessa, seria importante perceber o chão em que a luta se dá, enxergar suas rachaduras, a falta de beleza, os vazios, o cheiro dos ralos. Ou ficaremos, aqui e ali, dando murros no vento.
Eu não entraria numa luta em que, no limite, não preciso entrar já que o mundo ainda é meu, se a recepção fosse essa: não fez mais do que sua obrigação, não merece nada, não tô nem aí para a sua chegada.
Entendo a raiva; eu sinto a raiva. Quando não estou atenta, me entrego a devaneios de vingança: um mundo de abusadores violentamente mortos, decapitados, trucidados, castrados. Todos nós temos uma dimensão de violência que nos habita e que precisa ser sufocada. É certo que um homem cis jamais conseguirá sentir, ou mesmo compreender, as camadas da raiva que nos invadem quando o assunto é violência de gênero, e o esforço que fazemos para organizar essa raiva e assim lutar sem nos trituramos a nós mesmas.
A questão que se impõe agora é como acomodar aliados nesse mundo em ebulição que colocou as lutas em feudos onde só pode entrar quem ao feudo em questão pertence.
A despeito de meus furiosos sonhos, quem está morrendo somos nós, não eles. E se não dermos espaço para que aliados cheguem seguiremos lutando solitariamente. As opções oferecidas muitas vezes são duas: "os caras não se manifestam, covardes!" e "o cara se manifestou, não fez mais do que a obrigação. Agora recolha-se à sombra".
Faz sentido no fígado. Estamos sofrendo há muito tempo e decidimos que basta. Mas, se pensarmos nos caminhos para construirmos o mundo que queremos, continua fazendo sentido?
A luta, até aqui, quando rompe fronteiras é capturada pelo Capitalismo. Barbie foi uma sensação, uma febre. Mas para quem? No Oscar, quem estava brilhando no centro do palco era Ken.
Então, diante de tantas complexidades e nuances, quando alguém como Cuca pede ajuda o que devemos fazer? A pergunta é sincera e pensar em respostas pode nos ajudar a desenhar táticas de luta.
Penso sobre ela e acredito que devemos estender a mão. Não é nossa obrigação, certamente. E muitas de nós não conseguirão ou quererão. As dores são imensas, ainda estamos sangrando, não temos responsabilidade nenhuma sobre a redenção da alma alheia.
Resta a consciência de que, se o objetivo é a transformação da sociedade, algozes transformados em aliados são mais do que bem-vindos: são necessários.
Não acredito em penas eternas, em prisões como depósito de gente, em pessoas que não possam se transformar. É aquele velho ditado budista: quer mudar o mundo? Mude a si mesmo primeiro. Se a gente não acreditar que as pessoas se transformam, por que lutar?
A antropóloga Donna Haraway, liderança mundial nas agendas da emergência climática, escreveu que é hora de fazermos alianças na barriga do dragão. Sem essas possibilidades de diálogos não temos a menor chance. É o que me proponho a fazer. É o que venho fazendo. É o que quis fazer quando convidei a também antropóloga Paola Lins para desenhar comigo o curso "Feminismo para Homens", que pode ser acessado através da plataforma do ICL - Instituto Conhecimento Liberta.
Mulheres e homens são vítimas do regime da diferença sexual, cada um a seu modo. O mesmo machismo que nos mata, abusa, assedia, silencia e estupra é o que impede que homens chorem, demonstrem fraqueza ou se deixem atravessar. Punições bastante diferentes para uma mesma estrutura de poder, sem dúvida, mas, ainda assim, punições. Aquele que amarra está tão amarrado quanto aquele em quem ele passou as cordas, escreveu o filósofo trans Paul Preciado em "O Monstro que vos Fala".
O mesmo machismo que nos objetifica diz ao homem que o capital simbólico dele vem de pegar quantas de nós for preciso: quanto mais, melhor. Do jeito que for. O Estado, complacente, masculino e violento, subscreve há séculos. O estuprador é tu, cantaram e dançaram nossas amigas chilenas, dedo apontado para a cara das instituições.
Alguns homens começam a enxergar as grades de suas jaulas. Alguns começam a olhar para o passado e compreender os horrores que cometeram. Alguns dizem ou pensam: me envergonho do que fiz, de quem fui. Quero, com práticas, me implicar e me redimir.
O que fazer a partir desse ponto?
Vamos prender e cancelar os homens que cometeram crimes contra nossos corpos e que cedo ou tarde finalmente entenderam a violência contida em seus atos? Sabemos bem que convivemos com muitos deles. São nossos pais, tios, melhores amigos, irmãos, maridos, namorados, colegas de trabalho, ídolos nas artes, nos esportes. Eles estão agora mesmo com a gente; numa mesa de bar, no cinema, em nossas casas, em nossas camas. Não parecem nocivos - nós, inclusive, amamos muitos deles. O que terão feito e do que se arrependem?
Não quero com isso argumentar que devemos ignorar punições. Não devemos. Machismo estrutural não dá a ninguém o direito de cometer crimes. Devemos seguir denunciando, seguir exigindo justiça, seguir cobrando que o sistema pena atue com rigor. Mas sem combinar com educação não vamos a lugar algum - não tão cedo.
Prefiro Daniel Alves preso por um ano e saindo reformado do que preso por 20 e saindo de lá se achando uma vítima.
É hora de inovação tática. Hora dos diálogos mais difíceis. Hora de entrar na lama para seguir argumentando. Hora de sair da trincheira e ir buscar aliados nos lugares menos prováveis. Hora de encontros desconfortáveis. Hora de abrir mão de algumas de nossas dores para evitar que nossas filhas e netas sofram o que sofremos.
Às minhas amigas de luta, mulheres que amo e respeito, mulheres que admiro e celebro, toda a força do universo. Daqui de onde estamos não tem mais volta. Fizemos tudo o que fizemos sem saber onde isso daria. Chegamos onde gerações anteriores ainda não tinham chegado. É tudo inédito, são águas jamais navegadas, continentes desconhecidos. O que faremos a partir daqui? Colonizar ou agregar? Conscientizar ou excluir? Como colocou Vladimir Safatle em seu mais recente livro, O Alfabeto das Colisões: "mais importante do que tentar propor soluções é partilhar colisões".
Que tenhamos a sabedoria de compartilhar colisões sem nos separar, tendo em mente que nem sempre concordaremos com recuos táticos ou ações estratégicas, mas que queremos o mesmo tipo de sociedade e que só chegamos até aqui porque fomos capazes de nos unir. Umas às outras, e às nossas ancestrais.
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