Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Libertadores, Champions e outras contradições

O noticiário celebra a partidaça entre Real e City pela Champions. Três a três, duas viradas, espetáculo, absurdamento. De fato, pelo que se entende por futebol hoje, um jogão. Por que, então, eu estava irritada com o que vi?

A resposta não é simples e exigiu que eu parasse para refletir.

De imediato, sei que os protocolos me incomodam. Tudo muito organizadinho, limpinho, ensaiadinho. Desde o hino da competição até a reação da torcida comportada apesar do ritmo acelerado da partida. Futebol é isso? A pergunta é sincera. É isso? Essa disciplina acima de tudo? Esses protocolos acima de todos?

Até as crianças que entram com os times parecem robotizados. Quando uma delas se rebela e faz um gesto diferente ficamos "noooossa, que criança maravilhosa". Quando um jogador deixa alguma lágrima cair ficamos, "meu Deus! Que homem!". Num mundo de robôs qualquer demonstração de humanidade comove.

Mas o que me irritou nem foram essas coisas. Reclamo tanto dessa padronização tediosa que já nem tenho mais vontade de berrar. O que me irritou estava em outro lugar e tinha a ver com perfeição.

A perfeição é enfadonha porque ela é irreal. A busca pela perfeição é monótona na medida em que ela nos afasta de nós mesmos e nos aproxima do que não existe encarnado. O que provoca nossa emoção não é a imagem de um Deus onipresente e onipotente, mas a do homem sangrando na cruz. O que nos torna humanos são nossos buracos emocionais, nossas falhas, nossa capacidade de melhorar.

O City, portanto, era a razão da minha irritação. Um time que está se construindo como imbatível. Pode comprar todas as coisas sobre a terra, pode ter o melhor centro de treinamento, os melhores atletas, as performances mais potentes, os esquemas táticos mais disciplinados. O jogo passa a ser sobre controle e não sobre relação. Não é mais a respeito de passes e triangulações, mas sobre zonas e domínio.

Tem quem goste, claro. Não estou aqui a fim de colonizar ninguém com minhas ideias. Estou apenas expondo uma opinião. Eu não gosto. Acho chato mesmo quando é bom - como foi Real x City.

Mas e a Libertadores? Bem, ela ainda existe dentro de algum tipo de caos embora caminhe aceleradamente para ser uma Champions. Protocolos, disciplina, ordem. Progresso? Não, eu argumentaria que longe disso. Regresso, mais provavelmente.

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E então chego ao Fluminense e ao que me encanta em Fernando Diniz.

Existe ali nas Laranjeiras um homem que tenta fazer diferente do que está sendo feito na Europa. Um cara que busca remar contra a maré. Um maluco adorável. Até o ano passado era acusado de inventar muito e não ganhar nada. Bem, isso passou. Agora é acusado de inventar e correr muitos riscos.

Contra o Colo Colo, o jogo teve momentos de "Deus nos acuda", mas querer tirar esses momentos do futebol é querer matá-lo.

O jogo proposto por Diniz é um jogo de relações. Trata de como os que estão em campo usam a bola para escrever uma história e dialogar. É cheio de imperfeições e é justamente essa a dimensão que mais me interessa: como fazemos para corrigir um erro? Que tipo de solidariedade vem de quem está ao nosso redor quando pisamos na bola? Como podemos, juntos, reverter essa situação complicada?

Tem volante na zaga, tem atacante na lateral, tem goleiro na toqueira, tem centroavante na defesa. É ligeiramente caótico, verdade. E eu adoro a beleza do caos muito mais do que o tédio da (fictícia) perfeição.

O Colo Colo poderia ter vencido a partida no Maracanã. Seria um resultado normal pelo que foi o jogo. O Fluminense ainda não deu contornos ao seu caos, outra verdade. O time está em construção: tem novos atores, tem novas opções. Começo de ano, times em formação. Tudo normal até aqui. Pode dar certo ou dar errado. Pode dar errado antes de dar certo. Mas, mais do que qualquer outra coisa, tem nas Laranjeiras um cara que está tentando fazer alguma coisa diferente e se opondo ao poder do futebol mundial. Pra mim, é mais valioso isso do que qualquer resultado isolado.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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