Na estreia, um Flu que desfilou o melhor e o mais arriscado do Dinizismo
Lá vou eu, feito um salmão enlouquecido que sobe o rio quando tudo indica que ele deveria apenas seguir a correnteza, nadar contra a maré e elogiar o Fluminense de Diniz no jogo contra o Bragantino.
Colegas da envergadura de Juca e Casão criticaram o time. Quem sou eu na fila da opinião para contra-argumentar? Chego a duvidar de mim mesma, mas sigo nadando porque, quando tiro a reflexão da cabeça e jogo para o peito, ela faz sentido.
Vejam: eu não conheço Fernando Diniz. Nunca o vi pessoalmente. Nunca troquei mensagem com ele. Nunca liguei. Nunca bati um papo rápido. Tenho imenso carinho pelas ideias do homem, mas não sei quem é o homem.
Critiquei no episódio Tchê Tchê e critiquei o silêncio do treinador diante dos casos de violência de gênero. Mas a verdade é que Diniz é um ladrão por roubar meu coração. Eu vejo o Fluminense em campo e, na maior parte das vezes, me emociono.
O que eu vi no sábado à noite: o time jogou muita bola contra o Bragantino. Começou recuado e tomando sufoco. Durou uns 10 minutos no máximo isso. Depois pegou a bola e fez o que faz quando está num bom dia. Tocou, atacou, se movimentou e - o que faltou em jogos desse ano - chutou. Como chutou. Duas bolas explodiram na trave e o primeiro tempo foi a consagração de Cleyton, goleiro do Bragantino. Foi um verdadeiro bombardeio contra a defesa do Bragantino.
No segundo tempo, em sete minutos o Bragantino virou o jogo. Duas desatenções da defesa do Flu, composta por volantes e jogadores mais velhos. Nesse contexto, tomar gol passa a ser motivo para que esse fato seja lembrado e duramente criticado. Verdade: a defesa falhou. Mas e o primeiro gol que o Bragantino levou? Falha da defesa de zagueiros e jovens. Aí não se fala nada.
Futebol, como eu entendo o jogo, é também um espaço de desordem, de caos, de desarranjo, de falhas. É sobre como aqueles homens e mulheres conseguirão reagir às contingências como elas se apresentam. Como, enquanto grupo, saberão superar as dificuldades. É espaço para o inesperado, o inusitado, o não planejado. É mais sobre como lidar com o descontrole do que sobre como conseguir o controle.
"O time tem o controle do jogo", dizemos muitas vezes sem sequer questionar se é mesmo assim tão bom ter sempre o controle. Estar no controle. Dominar.
Tudo à volta diz que sim: vencer, controlar, mandar, chefiar é o que indica que demos certo na vida.
Mas é isso mesmo a vida - e o jogo?
Volto ao tema do Manchester City: é um timaço. Tem o controle. Manda no ritmo do jogo. Não perde a cabeça. Todos os jogadores sabem os eu papel e têm as suas zonas em campo. Toca assim e assado. Avança assim e assado. Volta assim e volta assado. Toma um gol e não perde a elegância. Recomeça com a organização de um robô. Não perde. Talvez não perca tão cedo.
É bonito? Eu não acho. Acho, aliás, amedrontador no sentido de tirar a dimensão de vida do futebol.
E qual a dimensão de vida? É o caos, a derrota, as falhas, os tropeços. É saber como reagir a tudo isso enquanto coletividade. É se ver diante do caos e colocar a bola no chão. É a solidariedade. Alguém vê isso no City?
Esse texto não é a celebração da derrota. Não gosto de perder. Quem gosta? É simplesmente horroroso perder. Mas é arrogância achar que vai existir uma formação que, montada para ser perfeita, conseguirá agir como uma máquina. A perfeição não existe e buscá-la é vão e tedioso. O futebol é tão imenso quanto a vida porque ele a interpreta e nos ensina a seguir apesar das falhas. Ensina sobre a importância das derrotas e sobre como se comportar com dignidade nas vitórias. O jogo acontece no universo da emoção e não no da razão.
Diniz está tentando fazer alguma coisa diferente do que se consolidou como a única forma de jogar, de treinar, de se comportar, de perfilar para o hino etc. Jesus fez isso em 2019 no Flamengo. Foi curto, rápido e comovente até para antis como eu. O trabalho de Diniz, por não ter sido vitorioso de imediato, é bem mais criticado. O curioso é que, mesmo depois de se mostrar vencedor, ele segue sendo criticado como se não tivesse sido.
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Quero receberEsse Fluminense não gosta de perder mas sabe que a derrota é parte da construção. Quem viu o primeiro tempo contra o Bragantino sentiu como o time jogou muita bola. Mas, por não querer apenas controlar o jogo, esse Fluminense dá espaço para que o rival ache seus espaços. E o Bragantino, competente, achou. Um empate de alto nível foi o que vimos.
O Fluminense pega o futebol de rua e oferece a ele um palco. Pega nossas almas de criança e coloca elas para jogar. É ingênuo nesse mundo capitalista do poder, do controle e do dinheiro que manda a gente vencer a todo o custo? Muitos dirão que sim. Eu, por outro lado, vejo como contra-hegemônico. Como resistência. Como uma rota de escape. E, nesse sentido, como arte.
Vivemos sendo obrigados a optar entre segurança e liberdade. Escolhemos segurança por estarmos inseridos numa sociedade que nos alimenta apenas de medo. Talvez por isso a liberdade que Diniz coloque em campo se pareça mais com o domínio das artes do que do esporte.
A torcida começa, outra vez, a chiar. Quer o melhor do Dinizismo abrindo mão de sua dose de risco. Não sabe que, ao expulsar os demônios estará mandando embora com eles os anjos. O Dinizismo só é o que é porque comporta o risco. Beleza, ousadia, inovação e risco: tudo articulado. Ou gostamos do conjunto ou abrimos mão de sua totalidade. Muita gente, imagino, quer optar pela segunda via. Não eu.
Termino com David Foster Wallace:
"O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos".
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