A única liberdade está em enxergar o outro
Lendo sobre a briga entre o empresário sul-africano Elon Musk e o governo Brasileiro, lembrei do discurso que o escritor David Foster Wallace fez para uma turma de formandos do Kenyon College em 2005 e que, mais tarde, viraria um pequeno livro: "This is Water" (Isso é Água) - texto que seria também publicado pela revista Piauí em 2008 com o título de "A liberdade de ver o outro".
Como a treta entre o sul-africano, cuja família acumulou fortuna durante e por causa do regime segregacionista do Apartheid, e as instituições brasileiras é em torno do conceito de liberdade, as palavras de Wallace ganham novos contornos.
Diz o autor:
"O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.
"Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita".
É interessante aplicar o que escreve Wallace ao conceito tão maltratado de liberdade de expressão. Assim como outro conceito liberal fictício de liberdade individual.
Liberdade é aquilo que acontece quando enxergamos o outro. Ela não pode ser individual porque somos um animal coletivo: não conseguimos existir sozinhos. Estamos em relação, sempre. O meu corpo afeta o seu que afeta o do outro. O meu comportamento afeta o seu, e vice-versa. Todo corpo existe na dimensão do social e não do individual. Assim, não existe essa liberdade de fazer e falar o que eu quiser, como quiser, quando quiser.
Se levarmos esses aspectos em consideração fica fácil compreender que liberdade de expressão não é conceito absoluto. Dentro de uma sociedade democrática é perfeitamente legítimo calar o nazista, o racista, o misógino, o LGBTfóbico. É perfeitamente legítimo censurar as vozes que falam para nos ferir, oprimir, matar. Liberdade é cuidarmos uns dos outros e não um direito totalitário de nos ofendermos uns aos outros.
Sobre o autor do texto citado, ele tirou a própria vida pouco tempo depois de falar aos formandos do Kenyon College. Foi um dos escritores mais originais e sensíveis que já passaram por aqui. Teve a trajetória de um cometa mas deixou suas pegadas na obra cuja leitura recomendo.
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