Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

O show de viralatice diante de John Textor na CPI das apostas

Tem tanta coisa errada na forma como a CPI das apostas começou a ser conduzida que por vezes pensei em não escrever esse texto dado o trabalho que teria para tentar organizar os argumentos. Mas vamos lá.

O desafio é explicar que, embora a CPI seja ferramenta legítima e necessária para tentar avaliar e regular a entrada das casas de apostas no futebol brasileiro, a forma como o tema está sendo debatido é, até aqui, de apequenamento e sujeição diante do famoso denunciante.

Claro que é preciso que investiguemos suspeitas de malfeitos. Não se trata de acreditar que tudo vai bem, nada está errado, pessoas não se corrompem, o futebol é puro, as apostas são sagradas e que, portanto, não precisamos desse debate. Precisamos. Precisamos muito.

Mas seria necessário focar em dois aspectos que me parecem fundamentais nesse debate que começou com o depoimento do dono do Botafogo no Senado. Um: observar que, diante de John Textor, o comportamento do corpo parlamentar foi, salvo raras exceções, constrangedor. E dois: Textor não entendeu o que é o futebol e quer enfiar a inteligência artificial para regular moralmente o comportamento humano.

Ao viralatismo:

Teve senador que praticamente pediu desculpas por falar português na audiência, deixando claro que, se quisesse, falaria sim em inglês porque ele sabe, of course my horse, usar a língua do convidado de honra da sessão.

Quem teria que ter se desculpado por estar falando em inglês seria justamente John Textor, que já mora aqui há bastante tempo, é dono de um clube de futebol e deveria, por elegância e respeito, falar português.

Depois teve senador, do Novo, sure, lembrando que 22 de Abril é dia do descobrimento do Brasil pelos portugueses e que nesse mesmo dia o Brasil estava sendo redescoberto por um norte-americano. What! Can you please say that again, Senator?

Poderiam até ter feito uma pausa para tocarmos o hino nacional estadunidense no senado brasileiro. The land of the free, the home of the brave. Tomem mais uma bomba na cabeça de vocês para largarem mão de questionar nosso excepcionalismo no mundo. Bater continência para a bandeira americana como fez Bolsonaro? Faltou só isso mesmo.

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Não custa lembrar que o Brasil não foi descoberto, mas invadido, ocupado, dizimado. Havia aqui civilizações quando as caravelas portuguesas chegaram. A narrativa de que não havia nada é oportuna para que apaguemos os extermínios. Havia línguas, cultura, saberes, amores, comunidades, música, dança e relacionamentos.

O mesmo senador, num momento menos infeliz, reclamou do excesso de propagandas de casas de aposta durante os jogos, nesse chamamento sem fim para que apostemos, e nisso ele acertou. É esse o ponto a ser debatido: quais os limites? Como regular? Como dosar a intensidade dos apelos para que gastemos dinheiro para ver quem fará o próximo gol? Como manter o futebol minimamente protegido desse desvio de atenção que pode ser tão nocivo e por vezes fatal?

A questão é que Textor estava sendo tratado como o grande salvador, o herói da batalha contra a corrupção no futebol. Por que? Por que ele não soube perder e foi buscar explicações para o constrangedor fracasso de seu time em 2023? Por que ele é gringo? Tomem aqui esses documentos cheios de indícios de erros estranhos de jogadores e de juízes e com provas de que o VAR é um lixo.

Bem, sabemos de tudo isso há bastante tempo. A entrada das apostas abre espaço para malfeitos? Certamente. Mas daí a apontar erros como indício de crime me parece uma associação muito frouxa.

Eu não sei o que Textor apresentou nos relatórios que entregou em sigilo ao Senado, mas é possível afirmar que tudo o que ele disse durante quase três horas de seu depoimento estava dentro do universo das coisas subjetivas. Nada de concreto. Nada, nada, nada.

As tais provas seriam: O jogador tal errou mais do que o seu normal na partida X. O jogador tal virou o corpo pro lado errado no lance Y mesmo nunca tendo feito isso. O time tal caiu muito de desempenho em determinada partida. A dimensão do erro no futebol passa para o campo da suspeita de crime.

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A única queda absurda de desempenho que não está sob suspeita para Textor é a do Botafogo no segundo tempo do jogo contra o Palmeiras - que talvez seja a maior e mais pontual queda de desempenho do campeonato inteiro. Mas essa tá ok. Textor sugeriu que os jogadores do seu time estavam meio tensos com tantos erros de arbitragem e por isso teriam perdido um jogo ganho.

O time vencia por 3x0. Três a Zero. O Botafogo teve um jogador questionavelmente expulso, verdade, mas quem nunca passou por isso? E logo depois de sofrer um gol o time de Textor teve um pênalti marcado a seu favor. O que é possível ser questionado nesse jogo? Eu realmente não sei.

Se as alegações de Textor sobre desempenho, performance, viradas de corpo para o lado errado, queda de produtividade em jogos específicos etc forem levadas a sério é melhor colocar a inteligência artificial para jogar.

O dono do Botafogo mostrou, em sigilo, erros do VAR e apontou situações em que a ferramenta teria sido mal utilizada, de acordo com o que disseram alguns senadores. Para isso não seria preciso uma CPI. O VAR, como digo há anos, é uma aberração.

Textor não parece entender que futebol acontece no campo da imprevisibilidade. E que só é o que é por causa disso. Ele quer uma matemática para o comportamento humano. Explicou que outro dia mesmo um jogador de basquete nos Estados Unidos foi afastado por ter tido um desempenho muito abaixo do usual. Suspeito, serasse? For the love of sweet baby jesus, não podemos mais ter dias ruins?

A verdade é que não, não podemos. Precisamos performar (sic). Precisamos ser sempre eficientes. Precisamos ser mais máquinas e menos humanos. É a mentalidade do CEO. É a mentalidade empresarial. O dono do Facebook, Mark Zuckerberg, acredita que exista uma equação matemática fundamental que permeia relações sociais entre seres humanos que governa o balanço das coisas e das pessoas pelas quais nos interessamos. Ele diz ter certeza disso. Ele quer descobrir essa fórmula. Textor deve apoiar.

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Como alguém que entende o futebol como uma planilhas de cálculos e nada mais pode entender que "a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana"? Recomendo para John Textor mais Nelson Rodrigues e menos Ludwig von Mises.

Percebem o perigo? Percebem como o futebol se encaminha para o abismo? Percebem o mal que Textor está causando mesmo movido por interesses legítimos, que seriam o de preservar o futebol da manipulação de resultados?

Eu passei pelo sacrifício de assistir às mais de duas horas de depoimento de Textor e digo que ou o estadunidense compreende do que é feito o futebol ou ele seguirá nessa cruzada para destruí-lo e, em seu lugar, criar um jogo mais robotizado, automatizado, frio e calculado. Mas, pelo menos, livre de falhas humanas, seja para acidentalmente recuar mal uma bola ou para ceder à tentação de ganhar uma graninha levando um amarelo.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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