Milly Lacombe

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John Kennedy está vivo num país que o queria morto

O jovem atacante e ídolo tricolor, John Kennedy, foi afastado por tempo indeterminado por fazer festa na concentração e depois faltar e atrasar em treinos. Ficam tristes todos aqueles e aquelas que veem em Kennedy um projeto de craque e um enorme potencial para idolatria, especialmente depois que ele fez o gol do título da Libertadores. Eu mesma fiquei muito triste com a sequência de tropeços dele, embora saiba que esse não é o final da história. A questão que se apresenta é: o final vai ser bom ou vai ser ruim?

E aqui precisamos do contexto.

Entre as vítimas de violência letal no país, quase 80% são negras. A cada 23 minutos morre uma pessoa negra. São 23.100 jovens negros mortos por ano, cerca de 63 por dia. A chance de um jovem negro ser morto é 2,5 vezes maior do que a de um jovem branco. Os dados são da ONU.

Segundo levantamento da Rede Observatórios de Segurança, a cada quatro horas um negro é morto pela polícia no Brasil. Das mais de 2.600 mortes em ações policiais em 2020, 82,7% das pessoas eram negras. O Rio de Janeiro lidera as estatísticas: só na capital fluminense, 90% dos mortos eram negros.

O atacante do Fluminense, John Kennedy, não está nas trágicas estatísticas. Ele sobreviveu. E fez o que é ainda mais improvável: virou ídolo no futebol.

A vasta maioria dos jovens e das jovens que sonham em virar jogador de futebol e ter no esporte um veículo para escapar da pobreza fracassa retumbantemente.

Dos que permanecem no jogo, a distribuição salarial é a seguinte — de acordo com pesquisa divulgada pela plataforma Cupom Válido e que reuniu dados da CBF, Statista e Ernst & Young: 55% dos atletas profissionais recebem aproximadamente um salário mínimo por mês. 33% do total dos atletas recebem entre R$ 1.001 e R$ 5.000. Somente 12% recebem salários acima de R$ 5.001.

Em Gaza, as crianças estão escrevendo seus nomes nos braços para poderem ser reconhecidas depois de assassinadas. Os jovens negros desse país são, desde muito cedo, aconselhados por suas mães a saírem de casa com seus documentos de identidade porque as mães, sem que isso precise ser dito textualmente, querem pelo menos ter o direito de reconhecer o corpo do filho. É prática. É uso e costume. É cultura assimilada na força do ódio, da tragédia, do extermínio e do genocídio.

Acho que seria irresponsável falarmos de John Kennedy e de suas imaturidades sem esse contexto social. "Ah, mas olha quantos aproveitaram suas chances mesmo vindo da pobreza", dizem alguns, apontando para a exceção a fim de anular a regra. Não é assim que funciona. A exceção, como sabemos, apenas reforça a regra.

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Mas, Milly, pera lá: isso quer dizer que ele não deve ser responsabilizado pelos deslizes que está cometendo contra o Fluminense, seu empregador?

Não, obviamente não.

Quer dizer apenas que ele é corresponsável. Porque a sociedade que não se implica nas injustiças e desigualdades que produz não pode ser considerada democrática.

"Eu sou eu e minhas circunstâncias", escreveu o espanhol José Ortega y Gasset. Somos nossas circunstâncias. Dizer coisas como "no lugar dele eu aproveitaria a oportunidade" é desconhecer uma verdade dolorida: no lugar dele, tendo a educação dele, tendo nascido dentro da miséria planejada para as pessoas periféricas dessa nação, sem amparo social e sem poder sonhar, faríamos as mesmas escolhas.

Associar JK à vagabundagem é também puro preconceito. Todos conhecemos empresários considerados "de sucesso" que jamais deixaram de frequentar baladas e tudo o que vem com a noite. É menos grave? Eu diria que talvez seja ainda pior: são pessoas com acesso à educação de qualidade, e portanto com mais bagagem para reconhecer certo e errado, e que comandam empresas com dezenas, centenas de funcionários.

Vai para a balada quem quiser — e depois lida com as consequências.

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O Fluminense está correto em afastar o atleta e está correto em lidar com a questão publicamente; sabemos que o clube tratou desse assunto privadamente por bastante tempo. Não funcionou e agora a diretoria e a comissão tentam outro caminho.

A questão que precisa ser colocada é que as consequências são bem pesadas com uma parcela muito específica de trabalhadores. Já com outro grupo de pessoas, podemos dizer que não há consequências e que essas pessoas jamais serão chamadas de vagabundas, punidas, demitidas, afastadas. Aliás, as pessoas mais perdulárias e preguiçosas que eu conheço são bastante brancas e bastante ricas.

John Kennedy pode retomar seu caminho de glória. Pode, outra vez, se superar. A essa altura, tendo vencido a pobreza e as peneiras, tendo virado profissional de um clube imenso e feito gols importantes, depende bastante dele voltar e virar ídolo, verdade. Mas depende de cada um de nós compreender sua história dentro desse sistema de violências chamado Brasil.

De certa forma, JK já venceu. A pergunta que fica é: ele está interessado em mais ou para ele chegar aqui já é suficiente? Vale lembrar que não há uma resposta certa, há apenas a necessidade de encontrar uma resposta honesta e depois bancar a decisão.

"Eu sou eu e minha circunstância", escreveu Ortega y Gasset. "E se não a salvo a ela, não me salvo a mim", concluiu o filósofo. A reflexão vale para todos e todas nós.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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