Os perigos que a ditadura do desempenho oferece ao futebol
O CEO do Botafogo, John Textor, levou a Brasília um catatau de documentos que, segundo ele, continha as provas definitivas a respeito de como os resultados estavam sendo manipulados no futebol brasileiro.
A capital federal o recebeu disposta a lustrar seus sapatos: teve deputado que praticamente pediu desculpas de joelhos por estar falando português no parlamento brasileiro. O certo, para esse homem, seria falar a língua de Textor que, o mesmo deputado fez questão de declarar, ele sabia falar. É que, para ser melhor entendido, optaria pela língua nacional mesmo. I'm so sorry, sir.
Bem, as tais provas levadas por Textor eram basicamente análises de desempenho e performance.
O que entendi é que, de acordo com o empresário estadunidense, não é normal que, um jogador que tenha um certo desempenho de forma regular, caia de produção e faça coisas estranhas num específico jogo, como errar um chute fácil em direção ao gol. Havia muitos exemplos de "desempenhos estranhos" no relatório que fez uso de inteligência artificial e foi elaborado pela empresa gringa que se chama Good Game - ou Jogo Bom.
Na última partida contra o São Paulo, Endrick, que vem se destacando com a camisa do Palmeiras e da seleção e que já é jogador do Real Madrid, foi mal. No dia seguinte, jornais espanhóis discriminavam sua atuação: chutes certos, chutes errados, quilômetros corridos, passes certos, passes errados, cruzamentos. De acordo com os números, o jovem não teria "performado" - um verbo que surge com o neoliberalismo e que é tão irritante quanto o seu significado.
Na quarta-feira 1º de maio, o Corinthians virou o jogo contra o América do Rio Grande do Norte e, para um site de análise de desempenho, o melhor jogador em campo foi o lateral esquerdo Bidu.
Quem viu o jogo sabe que não é verdade. Mas os dados dizem que é verdade e, portanto, que quem não concorda é burro. Trata-se da completa inversão da genial colocação de Nelson Rodrigues sobre o videotape: "O vídeotape é burro", disse o cronista depois de ser desmentido pelas imagens a respeito de um pênalti para o Fluminense - seu time de coração.
Futebol não é esporte que possa ser avaliado por métricas. Não é como beisebol, basquete, vôlei, futebol americano, equitação, curling. Futebol é o que é porque é diferente de tudo e só se iguala à experiência de viver. Não é fotografia, é filme. Não é imagem congelada vista por múltiplos ângulos; é história corrida baseada em coisas intuitivas e subjetivas.
Começar a desconfiar de desempenho de jogador vai nos levar a uma espécie de inferno paranoico. Claro que pode haver corrupção e manipulação não jogo. Não somos inocentes a ponto de achar que esse tipo de coisa não exista. Mas o natural é que um jogador ou uma jogadora tenha dias bons e dias ruins; momentos bons e momentos ruins; fases boas e fases ruins. Querer um mesmo tipo de desempenho sempre é querer colocar uma máquina para jogar. Desconfiar de um erro conferindo a ele a possibilidade de crime é perversão.
Toda a beleza desse esporte vem de sua imprevisibilidade.
Vem de Baggio batendo um pênalti na arquibancada. Vem do encontro entre Pelé e Mazukierwicz. Vem do Santo André campeão da Copa do Brasil dentro do Maracanã lotado. Vem do gol de barriga de Renato Gaúcho. Vem do time que mais ataca e mais cria chances perder a partida. Vem do pequeno vencer o grande. Vem do miserável vencer o todo poderoso. Vem do caráter de humanidade que existe em nossas falhas e tropeços.
Querer tirar a dimensão do erro humano do jogo é matá-lo. O futebol não é disputado entre empresas cujos funcionários "performam" bem e cuja eficiência pode ser medida a cada passo. É disputado entre pessoas que estão sujeitas a sofrimentos e traumas. Um jogador como Endrick já estar sendo reduzido a seu desempenho avaliado minuto a minuto é de uma crueldade incalculável.
Esse não é um jogo que precisa de CEOs treinados para calcular custo-benefício. Esse é um jogo que precisa de alma, de borogodó, de emoção. Um clube não precisa distribuir lucro; precisa fazer circular afetos, precisa nos fazer compreender, ainda que por 90 minutos, o que é a vida e por que estamos aqui. Eu queria acabar dizendo "mais Diniz e menos Textor", mas aí vocês iriam me xingar ainda mais forte então considerem o final do texto acontecendo na frase anterior.
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