Por que parar o campeonato é a coisa certa a ser feita
Futebol profissional não é dois times um contra o outro. Se fosse isso, não nos afetaríamos tanto com esse jogo. Futebol envolve uma multidão: roupeiros, porteiros, cozinheiras, massagistas, cortador de grama, ajudantes, auxiliares — precisa desse vilarejo inteirinho para que dois times entrem em campo e possam se enfrentar.
A classe trabalhadora, essa que faz o futebol acontecer, é sempre a mais afetada diante de tragédias políticas provocadas por episódios climáticos. Moram nos bairros mais atingidos e são, portanto, as mais impactadas com perdas e traumas.
Mesmo depois que a água baixar nada voltará ao normal no Rio Grande do Sul. Sem a inundação a tragédia vai ganhar ares ainda mais trágicos porque teremos acesso ao inventário do que restou e ao tamanho da destruição.
"Se o campeonato parar a vida desses trabalhadores fica ainda pior porque eles precisam trabalhar", é um dos argumentos contra a paralisação feito, muitas vezes, por pessoas que não estão nem aí para a vida do trabalhador. Por que acho isso?
Porque, primeiro, é claro que a vida dessa pessoa já está interrompida pela tragédia: ela não tem como chegar ao trabalho e ela está, provavelmente, tendo que lidar com a perda da casa, das coisas, de amores.
Depois, porque submeter uma pessoa nessas condições ao trabalho é dizer que o trabalho é um favor feito a ela. Gente, não é assim. Trabalho é uma troca contratual. Te dou o dinheiro porque preciso do serviço. Não é favor. E é para isso a CLT: para proteger as classes mais vulneráveis. Então esse é o pior dos argumentos.
"Ah, mas o resto do Brasil não pode parar. Estamos mandando Pix e doações, segue o jogo", pensam muitos.
Bem, o Brasil não vai parar assim como os gaúchos não vão parar se o campeonato for interrompido: eles estão nas ruas trabalhando no resgate de vidas, terão que reconstruir suas casas e tentar seguir a despeito da dor.
Parar o Brasileirão só é complicado porque interrompe contratos e faz alguns perderem muito dinheiro. Esse é o nó da questão. Humanitariamente falando, parar seria dizer "estamos juntos e reconhecemos o sofrimento de vocês". Envolver o futebol em trabalhos de assistência seria igualmente importante. Como? Bem, para isso a CBF contrata tanta gente boa que pode ter ideias.
O que está acontecendo, futebolisticamente falando, é uma história potente no interior da catástrofe: Grêmio, Inter e Juventude estão trabalhando juntos. Diego Costa está atuando em resgates. Rochet está servindo comida. Os presidentes dos três clubes da série A estão se falando e se ajudando.
Em entrevista para Domitila Becker no "De Primeira", do UOL, o presidente do Grêmio, Alberto Guerra, disse que não faz sentido ver a linha do VAR sendo traçada enquanto tem ali gente procurando por água potável para beber. É uma colocação forte. Ela sugere a pergunta: como seguiremos dentro da normalidade enquanto parte dos nossos padecem nesses termos? O que é um, dois, três, dez jogos diante de tantas mortes e de tanta destruição?
Me parece que os boleiros que estão no Rio Grande do Sul olham para esse tipo de debate e pensam: do que eles estão falando? Como podem estar preocupados com o próximo jogo? Acredito que Grêmio, Inter e Juventude não estão nem aí para o que farão no Brasileirão ou em que posição acabarão.
Quando a tragédia estiver controlada, talvez Inter, Grêmio e Juventude possam encontrar outros CTs para treinar: o deles estará inviável por meses. Aí sim, nesse caso, podem aceitar os convites feitos para que usassem estruturas de times fora do estado. Por agora, interromper o Brasileirão seria um gesto de amor. Mas quem olha contrato não olha para esses detalhes românticos, não é mesmo?
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