Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Haverá sinais

A imagem de um cavalo tentando sobreviver num pequeno espaço ilhado sobre um telhado quase completamente alagado nos paralisa. O que está acontecendo? É um filme de terror? É um pesadelo? É a distopia?

O cavalo, que é uma égua e que não tem culpa de conviver com a violência de humanos, buscou a única faixa seca para, instintivamente, seguir existindo. Dependia, agora, da caridade de quem o detesta.

Ah, mas pera lá, eu amo cavalos, vocês podem argumentar. Amamos apenas a nós mesmos por mais que a imagem do bicho sofrendo possa nos torturar.

Amamos o espelho e aqueles que chamamos de família. Assim, somos ensinados a ser competitivos. Deus e minha família. Contra tudo e contra todos. Armem-se. Defendam-se.

Somos socializados para acreditar que esse mundo foi feito para a humanidade. Afinal, o Cara saiu criando coisas para só no finalzinho introduzir o homem e a mulher. O resto, portanto, é inferior. Menor. Pior. Chamamos de recurso. Agua é recurso. Floresta é recurso. A natureza precisa ser dominada. Os bichos, adestrados. O diferente, cancelado, abusado, eliminado.

Diferente do quê?

Diferente da civilização colonial.

Diferente de quem não acredita em Deus e na família. Diferente do homem branco heterossexual que mesmo diante de uma calamidade acha razoável abusar do corpo da menina que dorme ao lado no abrigo.

Notícias sobre estupros em abrigos começam a nos inundar como a água passando desembestada pela calçada. "São monstros", berram muitos completamente alheios ao fato de essa ser uma cena comum para todas nós. Todas nós. Todas - todas nós. Onde? Normalmente dentro de nossas casas. Mas também nos escritórios. Em festas na casa de amigos. Por amigos. Na balada. Pelo anônimo que parecia simpático.

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Não, não são monstros.

São homens forjados por uma sociedade que os encoraja a ser assim. Se você nunca estuprou sua filha, sua sobrinha, a amiga da sua filha mas já prensou a mulher na balada e forçou um beijo ou a mão em seus seios saiba, por mais que isso te escandalize, que você e esse estuprador estão mais perto um do outro do que seus piores pesadelos poderiam supor.

O mundo está acabando, então por que não falarmos aqui a verdade sem reservas?

A mesma força que estupra crianças em abrigo é a que um dia fez você achar razoável chamar uma mulher de vagabunda, meter a mão em sua cara, mandar trocar de roupa, mandar calar a boca, bater uma punheta para a imagem da adolescente saindo da escola, criticar o fato de sua mulher querer comer a sobremesa avisando que o corpo dela já não é mais o mesmo e que ela deveria maneirar para seu pau continuar subindo, deixar de equiparar o salário dela ao de um homem mesmo se a função for a mesma... eu poderia encher esse espaço infinitamente, mas vou parar para reforçar, goste você ou não, que o estupro e o feminicídio fazem parte da mesma estrutura dessas violências todas.

Então, estamos todos apodrecidos por dentro.

Não se apresse em querer se separar do estuprador porque, ao fazer isso, você apenas enfraquece a luta. Se suas intenções são legítimas, se você quer ser um cara diferente, em vez de tentar desesperadamente se separar daquilo que chama de monstro, busque o monstro em você. Onde ele está? Quando ele aparece? Do que ele é feito?

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É o que brancos precisam fazer com seu racismo.

Negá-lo não ajuda porque o racismo existe em cada um e em cada uma de nós. Reconhecê-lo é o primeiro passo para eliminá-lo.

O que isso tem a ver com a égua em cima do telhado?

Eu conto.

A sociedade que normaliza qualidades atribuídas ao masculino vai nos matar a todos. Seguir explorando, abusando, acumulando, queimando, devastando e individualizando é o que vai nos extinguir. Seguir educando crianças para competir em detrimento de colaborar. Seguir separando meninos de meninas. Seguir avisando aos meninos "façam o corre de vocês porque seu capital virá de grana, poder e de quantas mulheres você for capaz de pegar, seja como for". Seguir silenciando qualidades atribuídas ao feminino como cuidado, delicadeza, afeto, entrega, solidariedade, comunidade e associando tudo isso ao caráter de menor, de inferior, de desprezível.

É o que vai nos matar porque são esses os predicados que fazem a gente acreditar que o capitalismo é tão inevitável quanto essencial porque ele nos torna livres.

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Livres? Quem é livre? Você é livre? Ter doze tipos de iogurte para escolher no supermercado te torna livre? Liberdade não tem nada a ver com escolha. Nada. Zero. Liberdade envolve conceitos como atenção, respeito, disciplina, comunidade. Envolve enxergar o outro.

Infelizmente, a menos que mandemos o capitalismo patriarcal às favas, nossa morte vai ser lenta, sufocante e fedorenta. Não vai ser pá-pum. Vai ser por etapas muito vagarosas.

Haverá sinais?

Sim.

Cavalos no telhado vai ser um deles.

Políticos de camisa social, manga arregaçada e colete da defesa civil colocando suas carinhas na chuva para pedir Pix à sociedade civil depois de liberarem todas as leis que existiam para proteger a natureza da fúria do lucro, outro.

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Haverá muitos sinais. Mas saberemos enxergá-los?

Se soubermos, haverá saída.

A saída passa pelo nosso reflorestamento.

Reflorestar a forma como vemos a sociedade.

Parar de produzir freneticamente. Parar de cavar o solo. Plantar. Diminuir. Menos eu, mais a gente. Igualdade radical e soberania popular. Um mundo no qual CEOs não ganhem 300 vezes mais do que aquela que varre o chão onde ele pisa. Um mundo onde bancos não lucrem 10 bilhões por trimestre e achem bonito doar 10 milhões para ajuda numa calamidade. Um mundo com mais mulheres de 65 anos simulando sexo oral no palco e menos homens enchendo a cara de viagra para cometer crimes. Um mundo com menos "em nome de Deus" e mais "em nome do próximo". Um mundo no qual o pagamento de impostos seja entendido como a grande potência de uma sociedade. Mais escolas gratuitas. Creches gratuitas. Hospitais gratuitos. Um mundo onde conceitos como o de saúde privada seja compreendido pelo que é: uma ficção. Toda saúde é pública. A minha afeta a sua. Assim como liberdade não pode ser de um e só existe se for de todos. Um mundo onde qualquer ato sexual consentido seja sagrado e qualquer modelo de família no qual o pai mande seja profano.

A imagem do cavalo em cima do telhado nos choca porque sabemos que foram nossas ações que colocaram o bicho nessa situação trágica. Ele não tem culpa. Ele é completamente inocente.

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Da mesma forma, as imagens dos cachorros sendo resgatados das inundações nos dilaceram. Sabemos que eles são vítimas da nossa ganância e que, enquanto espécie companheira, eles nos oferecem tudo sem pedir nada em troca e, fazendo isso, nos ajudam a seguir. O amor que eles proliferam é feito da mesma força que acendeu as estrelas.

Temos saída. Mas não temos nem mais um minuto para pensar. É agora. Raiva. Nojo. Revolta. Sentimentos absolutamente compreensíveis. Não os percamos de vista, mas saibamos para quem apontá-los. Para políticos, influenciadores, "coaches" e empresários que sigam negando a emergência climática e agindo para fortalecer políticas capitalistas e patriarcais de destruição e de separação. Para qualquer um que berre "menos estado, o mercado nos salvará". Não, não salvará. Ele nos matará. É ele que cobra 100 reais pelo galão de água durante uma calamidade social. Esses são os inimigos. É contra eles a guerra que precisamos travar.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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