Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Neymar é o retrato de um Brasil doente, decadente, reativo e melancólico

Gosto de começar a falar de Neymar lembrando o que senti vendo ele entrar em uma partida pela primeira vez, aos 14 anos, em um jogo da Copinha no campo do Nacional, em São Paulo. No momento em que o adolescente pisou no gramado e tocou na bola eu chorei. Chorei porque percebi que havia ali um fora-de-série em começo de carreira, um desses eventos únicos na vida, o de testemunhar presencialmente o nascimento de um gênio. Ele era ainda uma criança, mas certamente se transformaria em um atleta de ponta, conhecido no mundo inteiro, craque. Seria, eu imaginei naquele dia, um encantador de almas, um artista. Que futuro lindo aquele menino pequenino e magrinho teria pela frente. Que privilégio estar vendo ele surgir.

Corta.

Neymar nunca alcançou o topo do mundo no futebol e, muito pior, se tornou um cidadão alinhado a tudo o que representa o apocalipse, seja no campo da sexualidade, no campo do gênero, no campo do social, do econômico, do psíquico, do ambiental, do epistêmico e no do político.

Técnica para ser o maior do mundo não faltou, é verdade. Abençoado com talento infinito, Neymar foi capaz de encantar em momentos muito específicos. Imagens de seus dribles, de seus gols e de seus passes estão eternizadas em vídeos. Mas foi isso. Ele por ele. Ele pelo sucesso de um empreendimento chamado Neymar, ele entendido como empresa, ele fazendo escolhas baseadas em custo benefício, ele contra a rapa.

Como nem o futebol e nem a vida é jogo de um só, hoje Neymar virou sinônimo de pirraça. Uma pessoa pública tão agradável quanto um pedaço de carne entre dois molares. Um homem de imenso talento para dar opiniões equivocadas e apoiar projetos que rimam com morte, destruição, devastação, aniquilação.

Vejamos - para ficar apenas no campo do ambiental.

Simpatizou com uma ideia extremista de nação ao declarar apoio à reeleição de Jair Bolsonaro, foi acusado de construir um lago artificial sem licença ambiental, com manejo de areia, pedras e da água de um rio (foi multado, recorreu e - tchanam! - foi absolvido), está colocando seu dinheiro em sociedade num empreendimento que vai impactar quase 100 quilômetros de praias preservadas, área que precisaria ser protegida em nome de qualquer possibilidade decente de futuro, para fazer nascer ali um condomínio cheio de casas luxuosas.

"Estou junto com a Due na criação da rota Due caribe brasileiro. Vamos transformar o litoral nordestino e trazer muito desenvolvimento social e econômico para a região. Em breve, mais novidades", disse ele a favor do empreendimento em vídeo no Instagram.

Crescimento social e econômico, ele fala.

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É curioso que quando se fala em crescimento econômico associado ao social a ideia é sempre de que essa região é atrasada e precária e se eu, do alto da minha benevolência, instalar ali meu empreendimento as pessoas finalmente terão trabalho. Que tipo de trabalho não vem ao caso, eles pensam. Mas vem ao caso sim porque estamos falando de trabalhos precarizados servindo aos mimos e às exigências dos milionários que ali se instalarão. Alguém conhece um lugar em que a natureza foi invadida, derrubada e destruída para dar lugar a construções megalomaníacas e onde pessoas trabalharam e melhoraram muito de vida? Ou todas as histórias falam de luxuosos empreendimentos em locais paradisíacos e de uma nova classe de pessoas exploradas trabalhando sem parar e existindo na periferia que nasce com o luxo?

Para além disso, o que leva alguém que já tem dinheiro para ter uma vida de rei mesmo se existir por 200 anos a querer mais. Mais, mais e mais. O que leva alguém com tanta riqueza a seguir destruindo a natureza? Um mínimo interesse para se transformar em uma pessoa melhor faria Neymar entender por que não podemos falar em aberrações como privatizar praias e por que ele deveria estar usando o que ainda resta de seu coeficiente de celebridade para impedir projetos como esse.

Como não joga mais futebol, Neymar gasta seu tempo existindo como gamer e influenciador. Frequentador das redes sociais, tem por esporte responder críticas que recebe assim de bate-pronto. Abre a câmera e, usando toda a sua masculinidade fragilizada, infantilizada e amedrontada, sai vomitando o que passa pela cabeça. Contra Luana Piovani decidiu que seria bacana usar a cartilha do machismo de A a Z: feia, velha, louca, quer alguma coisa comigo, péssima mãe e, a mais grotesca numa lista de aberrações, fazendo sugestão à violência física ao dizer que deveriam colocar um sapato em sua boca. Tudo isso porque Luana fez críticas ao que entendeu ser o apoio dele a um projeto de privatização de praias.

O descontrole do craque é tanto que quando o repórter Diogo Defante fez também uma crítica à privatização de praias sem citar o nome de Neymar, já que o projeto não é dele mas de Flavio Bolsonaro, Neymar reagiu com outro chilique. Bem menos agressivo e grotesco do que fez com Luana, claro. Mas também um chilique.

Houve um dia em que Neymar partia para cima de zagueiros escrevendo poesia com a bola agarrada aos pés. Hoje, parte para cima de mulheres como Piovani e Nath Finanças cometendo insultos com a boca.

Com Nath Finanças, uma economista especializada no orçamento de pessoas de baixa renda que usa as redes sociais para compartilhar conhecimento, Neymar esperneou quando ela fez uma brincadeira associando o nome dele à palavra imposto de renda. "Gente, Neymar na minha DM HOJE implorando pra ajudar a declarar o Imposto de Renda", ela escreveu.

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Foi isso. Bastou para tirar Neymar do sério e descontrolá-lo. Não sabe nada sobre carapuças o menino Ney.

Assim como o Brasil envelhecido e conservador, Neymar está perdido entre o masculinidade tóxica e o empreendedorismo predador. Acha razoável responder a uma crítica chamando mulher de feia, velha e louca e acha bonito investir em projetos que envolvam a destruição de áreas de proteção ambiental.

O que tem em Neymar além desses dois mundos, o do homem tóxico e o do capitalista destruidor? Tem o jogador que parece não gostar mais de jogar e o pai que não se recusa a pagar largas pensões para que as mulheres que dele engravidaram cuidem dos filhos que ele fez. Parece bastante coisa, mas é bem pouco na verdade. É o mínimo, aliás.

Neymar, assim como a masculinidade frágil de forma geral, não consegue escutar críticas sem espernear e quando esperneia a pirraça acontece em escala mundial dada sua fama e alcance. Essa masculinidade tão apequenada precisa invariavelmente dar a última palavra, falar mais alto, xingar mais forte, reagir mais virulentamente.

Trata-se de um garoto preso no corpo de um homem. Um garoto que se recusa a crescer. Um garoto que acredita que a vida é rasgar os pneus do amigo que fez uma brincadeira boba com seus sapatos. Um garoto que abre a câmera e sai falando qualquer absurdo machista que passe pela sua cabeça porque tem certeza que o mundo é seu playground e que vomitar misoginia é apenas mais um chute em direção ao gol.

Neymar poderia ter sido imenso e, nesse caminho, nos ajudado a viver numa sociedade mais justa. Optou por jogar sozinho. E, jogando sozinho, vai protagonizando espetáculos deprimentes de descontroles e desatinos sempre para proteger os mesmos valores decadentes que estão nos afundando em destruição. As pessoas mudam e Neymar pode um dia mudar. Seria uma transformação poderosa. Mas, para isso, ele precisaria querer abrir a cabeça e me parece que ele não quer. Assim, seguiremos testemunhando seus chiliques, fúria verbal e descontroles. Quase sempre - por motivos que Neymar precisará de tempo para compreender - direcionados mais violentamente contra mulheres.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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