Milly Lacombe

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Em relação aos direitos das mulheres, governo Lula dá as mãos a extremistas

O Brasil decide se vai legalizar o estupro impedindo que crianças e mulheres estupradas abortem sob pena de 20 anos de prisão caso o façam. Arthur Lira, o presidente da câmara acusado pela ex-mulher de estupro, colocou a pauta na agenda às pressas. Aborto é palavra usada pela extrema direita de forma farta. É a favor ou contra?, querem saber. Sem lenga-lenga: você é a favor ou contra, insistem os extremistas fundamentalistas evitando contextualizar o debate. Serve apenas "sim" ou "não".

A esquerda, acuada e sem vocabulário próprio, argumenta usando o léxico do inimigo. A favor!, berram como se esse fosse o debate. Uma esquerda que aceita o convite para entrar no ambiente dos fascistas, aceita as armas por eles oferecidas e aceita travar nesses termos a batalha. Usar a linguagem do inimigo nunca fez guerra alguma ser vencida. E a esquerda moribunda não tem linguagem própria há décadas.

Agora, o líder do governo liberou a bancada para votar como quiser no que está sendo chamada de a PL do estupro. Bizarro? Muito. Tosco? Bastante. Cruel? Sem dúvida. Covarde? Demais. Nojento? Sim, mil vezes sim.

Recentemente, a ministra da saúde do governo Lula ameaçou interromper uma entrevista porque a repórter insista em falar de aborto. A ministra foi incapaz de dizer que o debate não é esse e, então, jogar o mérito para onde ele deve ir: saúde reprodutiva, segurança pública, dignidade social, economia. Todas essas são as verdadeiras questões que o uso da palavra aborto limita, ofusca, esconde.

Por que a esquerda faz isso? Há explicações. Nenhuma delas bonita.

Lula e seu time não estão de fato preocupados com direitos das mulheres. Lula se recusou a indicar uma mulher para as vagas do STF e formou uma suprema corte deixando ali apenas uma de nós. Antes, formou um ministério com mulheres e saiu demitindo justamente elas em nome do fisiologismo com o centrão. Mulheres usadas como moeda de troca.

Lula e seu time estão calados em relação à ameaça de que a sociedade brasileira esteja perto de legalizar o estupro de vulnerável. Para colocar em poucas palavras, é um vexame, uma aberração, um ultraje, um crime, um deboche, um desaforo. Não há articulação interna para evitar essa tragédia social e não há revolta da porta para fora. Em nome do quê? Da economia, dizem. É esse o foco de Lula e sua turma.

Lula, seu time e boa parte da esquerda acreditam que saúde reprodutiva e direitos da mulher são questões menores do que a econômica, ignorando, ou fingindo ignorar, que essas são pautas econômicas por natureza.

Isso, claro, se por economia você entender economia política e práticas sociais, que é o que a economia é de fato. Quem tirou a ciência econômica desse lugar foram os liberais, e quem aceitou esse jogo perverso foi a esquerda. Economia é prática social e não modelos matemáticos. Quem fala em austeridade fiscal e se diz de esquerda já começa o jogo derrotado.

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O governo não é o congresso, verdade. Mas votamos em Lula para nos afastar de temeridades como essa. Votamos para voltar a acreditar que direitos das mulheres importam. Votamos para tirar do poder o homem que disse que estupro era merecimento. Votamos por acreditar em pautas que sejam fundamentais para a esquerda. Lula foi eleito pelas mulheres e agora cospe em nossas caras. É que essa esquerda morreu. Morreu e não dá sinais de que voltará. Uma esquerda que acredita que direito feminino não está dentro de econômica política é uma esquerda machista e misógina.

Falar de saúde reprodutiva é falar de creches públicas, de escolas públicas, de transporte público, de educação sexual nas escolas, de divisão de tarefas no lar, de salários iguais para homens e mulheres na mesma função. Me digam quais dessas questões não é econômica?

Quando a esquerda repete "aborto" e "estupro" e se recusa a colocar o debate onde ele deveria estar quem perde somos nós.

Idealmente, nenhuma mulher precisaria fazer um aborto. Com educação sexual e distribuição de materiais contraceptivos a taxa de aborto seria bastante reduzida. E, ainda assim, em casos de uma gravidez indesejada, essa mulher deveria ser amparada pelo estado para interrompê-la. Em caso de estupro nós nem deveríamos estar debatendo, correto? Que tipo de perversão faz alguém achar que uma mulher estuprada precisa seguir com o resultado do crime dentro de seu corpo?

A mulher que, grávida, decidir seguir com a gestação seria então amplamente amparada pelo estado com uma licença maternidade longa, creches públicas distribuídas por todos os bairros às dezenas, escolas idem, transporte facilitado para ir e voltar do trabalho, educação sobre divisão de trabalho no lar para casais heterossexuais, amparo ainda maior para mães-solo etc etc etc.

Aceitar que o debate seja religioso, como faz Lula, assinando cartinhas para acalmar os evangélicos explicando que ele mesmo é contra o aborto, é nos matar lentamente. O debate religioso é uma ficção e uma manipulação.

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Decidir quando uma vida começa de verdade é como decidir quantos anjos cabem dançando na cabeça de um alfinete. Tanto faz, ninguém sabe, é absolutamente ridículo que topemos falar desse tipo de absurdo.

Quem sabe quando a alma entra no corpo? Quem sabe se existe alma? Quem aceita limitar o debate a essa paranoia obscurantista? Se você acha que a alma entra no corpo no momento do coito, então realmente abortar seria um assassinato. Não aborte e siga sua vida lendo a Bíblia como quem lê a Folha de São Paulo. Como se Noé e sua arca fossem uma notícia e não uma fábula.

Os deputados que estão votando a favor dessa aberração são os primeiros a correr para mandar que se abortem os fetos de suas amantes e alguns estão envolvidos em acusações de estupros. Se um dia as trabalhadoras sexuais de Brasília decidirem contar o que sabem sobre a vida desses senhores acaba a República. Então, além de criminoso, um debate nesses termos é hipócrita.

Enquanto o governo se encolhe dessa conversa, a parte da esquerda que a encara segue jogando o jogo dos extremistas usando seu vocabulário para debater. Não vai funcionar. Nunca funcionou. Aliás, é o que nos trouxe até aqui.

Sobre a parte da esquerda que acredita que Lula está encurralado e que é aceitável se omitir desse debate em nome da agenda econômica, apenas uma coisa a dizer: você é tão machista e misógino quanto seus colegas da extrema direita de quem você quer tanto se separar. Durma com essa constatação.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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