Manifestação de Lula sobre PL antiaborto é tardia, apequenada e ofensiva
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva resolveu falar. Talvez movido pelo calor dos protestos, com sete dias de atraso Lula deu sua opinião sobre aquela que tem sido chamada de a PL do estupro, que puniria com mais rigor a criança estuprada do que seu estuprador. Uma opinião infame, vergonhosa, tediosa, incompleta e ofensiva sob muitos aspectos.
Lula diz que a PL é uma insanidade mas emenda com "sou contra o aborto". Por que e para que falar isso? Claro, para se dirigir aos evangélicos, conservadores e demais grupos religiosos extremistas como a CNBB.
Nas redes sociais, fez ainda pior. Soltou postagem que começa com a frase: "sou contra o aborto". Uma notinha inócua que pretende agradar a todos e certamente não agrada a ninguém. Ou, corrigindo: agrada aos que se dizem de esquerda mas acham razoável que a vida e os corpos das mulheres sejam usados como cálculo eleitoreiro. Em nome, justificam, de derrotar o fascismo. Seria importante lembrar a esses alecrins dourados que ser mulher nesse mundo é viver sem dignidade, sem integridade e sem segurança, seja em democracias ou em ditaduras.
A lógica, nesse caso, é: para derrotar o fascismo vai ser preciso que vocês continuem morrendo em silêncio. Bem, meus queridos colegas do campo da esquerda, talvez nós não estejamos mais dispostas a fazer essa concessão.
Meu caro presidente, em quem votei e votarei com força novamente caso a alternativa seja o fascismo em qualquer uma de suas formas, não nos interessa saber sua opinião sobre o aborto. Simplesmente não vem ao caso. Guarde para si. Aliás, entendimento tão limitado de que o debate é sobre o aborto é um vexame para a sua administração.
"Ah, mas ele diz isso para não perder eleitores", podem argumentar alguns. Ao que responderemos: não venha fazer cálculo político com nossas vidas, nossos corpos, nossa integridade, nossa cidadania. Não é admissível, não é íntegro, não é decente, não é coisa de gente séria.
"Fui casado, tive cinco filhos, oito netos e uma bisneta. Eu sou contra o aborto. Entretanto, como o aborto é realidade, a gente precisa tratar como uma questão de saúde pública", disse o presidente, imagino, acreditando estar agradando todos os lados com essa declaração.
Mas vejam, trata-se de uma declaração de quem não entende o que está em jogo, não entende o debate, não entende absolutamente nada do tema. Que Lula tenha se omitido de buscar uma educação feminista em sua jornada é das coisas mais lamentáveis que podemos constatar.
Ele segue:
"Tenho certeza que o que tem na lei já garante de forma civilizada para tratar com rigor o estuprador e com respeito a vítima. É isso que precisa ser feito".
Não, mil vezes não.
Seria esse justamente o momento para usar seu poder e pautar o debate verdadeiro, real. Seria o momento para jogar luz no que importa de fato: a vida das mulheres. Mas Lula se encolheu, se apequenou, ficou minúsculo.
A impressão é a de que Lula quer parar logo com essa treta sem importância porque tem coisas mais sérias a resolver.
O que é mais sério, presidente? A fome?
Pois vejamos.
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Mas, mais importante do que isso, compreender que não estamos falando de aborto ou de estupro seria o fundamental para alguém com a sua trajetória. Estamos falando, senhor presidente, de saúde reprodutiva e de economia política. Saúde e economia são temas importantes para sua administração?
Quem limita o debate ao aborto é o campo inimigo, esse com o qual o senhor ainda acredita que pode fazer pactos. Não, meu querido presidente, não há diálogo com quem acha que estupro é elogio e merecimento. Foi isso o que disse o líder dessa turma, o ex-presidente Jair Bolsonaro.
E exatamente porque não existe diálogo com extremistas é que estamos criticando tão fortemente o seu governo, por acreditar que com ele existe diálogo e espaço para aprimoramento.
Então, seria importante saber que toda vez que o senhor escutar a palavra aborto não é disso que se trata. Ouviu aborto pense em saúde reprodutiva.
Falaram aborto, pense em creches públicas. Escutou aborto, pense em licença-maternidade, divisão sexual das tarefas dentro de um lar, centros culturais em todos os bairros, salários iguais para homens e mulheres na mesma função, transporte público de qualidade, saúde feminina e de pessoas com útero sem preconceitos, educação sexual, distribuição de contraceptivos. É uma lista bastante grande. O senhor percebe que são temas de saúde e de economia política? Temas que deveriam ser tratados como prioritários por todos os seus ministérios.
Que seu governo tenha medo de colocar o debate onde ele precisa estar é absolutamente ofensivo com o maior grupo político que o elegeu. Que a esquerda acredite que o debate sobre saúde reprodutiva é um debate menor revela explicitamente todo o machismo e a misoginia que infectam esse campo.
Nas eleições de 2022, poucos foram os candidatos de esquerda que defenderam o aborto e alargaram o debate. Do que nos serviu essa posição acovardada? Agora, justamente agora, como diz o professor Vladimir Safatle, "seria o momento dos parlamentares de esquerda, em bloco, pautarem a defesa do aborto, obrigando a sociedade a discutir e argumentar".
A extrema direita dá aulas sobre como pautar questões polêmicas. Certo que são questões de cunho fascista, mas temos aí aula atrás de aula.
Colocar o debate em circulação é criar campo para que, ali na frente, ele seja efetivado. Essa PL não vai virar lei ainda, mas a extrema-direita terá alargado outra vez a radicalização do debate e, se nada for feito, daqui a alguns anos ou meses, estaremos vivendo em um Brasil que pune com mais força a criança estuprada do que seu algoz. Vamos olhar para trás e lembrar que foi o seu governo que teve medo de radicalizar o debate no momento em que havia espaço para isso. Mas o senhor escolheu não lutar com as mulheres porque fez cálculo político com nossos corpos e com nossas vidas. Uma vergonha, meu querido presidente Lula. Uma vergonha histórica.
Eu, Luiz Inácio, sou contra o aborto. Mas, como o aborto é uma realidade, precisamos tratar como uma questão de saúde pública. Eu acho uma insanidade querer punir uma mulher vítima de estupro com uma pena maior que um criminoso que comete o estupro. Tenho certeza que o que já?
-- Lula (@LulaOficial) June 15, 2024
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