O drible como ofensa
Não se dribla mais sem que o jogador driblado sinta-se profundamente ofendido. A narração dos jogos colabora para essa sensação. Vou deixar de lado o aspecto infantil da linguagem usada para contar a história de um drible durante uma partida televisionada: o leitor e a leitora atento e atenta entenderão que "bola no meio das pernas" seguido de gracinhas e da voz risonha do narrador tem sentidos múltiplos.
Quero falar de Vini Jr. e de seu modo de jogar.
Na Globo, Junior, o maestro que comentava Brasil e Paraguai pela Copa América, disse que o drible é bacana, mas com limite. E eu fiquei pensando: por que, meu Deus? Que mundo é esse que quer limitar o drible? A masculinidade do adversário que não aguenta um drible sem querer revidar precisa ser protegida mais do que o respeito pelo futebol?
A resposta não é simples. Ela passa pela naturalização do que se chama "eficiência". É o que se espera de um funcionário, de uma empresa, de qualquer modelo que se pretenda bem sucedido. Eficiência. Custo-benefício. Todas as coisas dentro de uma planilha.
Quanta bobagem. Quanta pequenez querer encaixar essa imensidão chamada futebol em caixas tão quadradas.
Driblar é respeitar o futebol. E mais: respeitar o futebol brasileiro. O drible nasceu aqui.
Segundo contam, nasceu do cruzamento entre o recém chegado futebol e a recém proibida capoeira. Lá onde não se podia mais capoeirar e a bola de futebol tinha acabado de chegar as populações negras misturaram as coisas. O drible é uma enganação legítima. É coisa nossa.
Garrincha driblava para trás. Driblava para os lados. Driblava para dançar. Numa época em que "eficiência" era palavra pouco usada e na qual o futebol não era apenas um negócio, mas dava sentido à vida.
O drible que deixa o adversário zonzo serve para desmoralizá-lo - e esse é um aspecto bastante genuíno do futebol. Goleadas, dribles, fintas, tudo vale, tudo é razoável. Carrinho por trás, simular faltas, tentar enganar o juiz, fazer cera são as coisas a serem combatidas. Mas os moralizadores do drible sobre isso pouco falam. O que não querem é ver atleta se sentir humilhado.
Esses jogadores que se melindram por tão pouco, que se sentem afetados em sua masculinidade porque levaram uma bola no meio das pernas e, indignados, rompem para bater no driblador ou chorar para o juiz, não atuam com respeito ao futebol. Os juízes que punem os dribles com cartões não respeitam o futebol. Os treinadores que compactuam com essa bobagem não respeitam o futebol.
Bom dizer que Vini Jr. usa o drible também como ferramenta de luta contra o racismo. Quanto mais xingam, mas ele deixa rival deitado e zonzo. Quanto mais tentam diminuí-lo, mais ele se mostra radiante e dançante. Que resista ao adestramento que tentam impor a ele e siga jogando com a alegria que deveria fazer parte do futebol brasileiro.
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