Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

O que todos podemos aprender com o deslize verbal de Abel Ferreira

O treinador do Palmeiras disse, durante a mais recente coletiva de imprensa pós-jogo, que o Palmeiras não era um time de "índios". A colocação visava declarar que o Palmeiras não era um time bagunçado que só atacava. No limite, trata-se de um depoimento de conteúdo racista mas que entra naquele lugar do "quem nunca?". Todas e todos nós já cometemos o mesmo erro de Abel. "Coisa de índio" a gente dizia como "coisa de selvagem"; "não esquece de levar o cocar" a gente dizia como "isso é um programa-roubada" etc etc.

De imediato, Abel fez um pedido de desculpas no tom do "quem me conhece sabe". Esse tipo de "foi mal aí" não serve se a intenção é de fato compreender por que a declaração não é bacana. No dia seguinte, Abel escreveu uma nota mais adequada falando em não tolerar preconceitos e em evoluir como pessoa. Foi bem.

Só que o interessante é aproveitar o deslize para compreendermos a situação mais profundamente e nos implicarmos nela.

Estou escutando muita gente argumentar que, vejam, no futebol essa expressão "time de índios" retoma os filmes de faroeste nos quais os índios só atacavam os cowboys sem organização nenhuma. Estou usando o verbete incorreto "índios" porque os filmes e as séries que foram muito populares durante uma época, como Bonanza, assim se referiam às populações ameríndias.

Mas explicar a origem da colocação equivocada não a atenua. Podemos explicar os experimentos genéticos feitos pelos nazistas que visavam exterminar qualquer fenótipo que não fosse o ariano. Isso atenua o horror do que foi cometido? Não, de forma alguma. Podemos explicar as razões econômicas do colonialismo. Isso atenua sua violência? Acho que todos com um mínimo de conhecimento das atrocidades relacionadas ao colonialismo responderiam "não".

Portanto, a explicação sobre por que o futebol diz "time de índios"não atenua a violência da colocação.

"Ah, mas essas pessoas que recamam são hiper-sensíveis com umas palavrinhas apenas. O cara errou, se desculpou, segue o jogo. Eu também já errei".

Por partes.

Sim, quase todos nós que nascemos e vivemos nesse país chamado Brasil já erramos esse mesmo erro de Abel. E por que? Porque aprendemos na escola que o Brasil foi descoberto em 1500.

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E é nesse ponto que o jogo da violência simbólica tem seu pontapé inicial e nós vamos nos transformando em pessoas ignorantes e racistas. O Brasil não foi descoberto, o Brasil foi invadido e ocupado. Violentamente.

Quando os Europeus chegaram havia aqui uma infinidade de culturas. Havia saberes, civilizações, amores, música, dança, rituais.

"Ah, mas não era tanta gente assim. Era muito espaço vazio", argumentam.

Vejamos: era, apenas nessa região que hoje chamamos de Brasil, cerca de 10 milhões de pessoas e mil línguas. É pouco? Não me parece pouco. Hoje, as populações originárias compõem 800 mil pessoas. Que nome se dá a esse apagamento? Só tem um: Genocídio.

A chegada dos Europeus foi violenta e brutal. Houve quem morresse de doenças trazidas, verdade, mas 98% das pessoas que morreram foram exterminadas. Os badalados Bandeirantes, esse tipo de genocida que tem estátua em tamanho colossal dentro de São Paulo e que dá nome a importantes rodovias pelo país, tinham milhares de escravizados indígenas. A tal da miscigenação que tanto descreve essa pátria foi feita na base do estupro e do sequestro. Como diz o professor Vladimir Safatle, Brasil é o nome que se dá a uma forma de violência.

O colonialismo apaga não apenas vidas; ele apaga um conjunto de conhecimentos e de tecnologias. Ele essencializa as populações colonizadas. Nesse contexto "indígena" passa a ser apenas uma coisa, e esse reducionismo carrega violências. A diversidade que existe entre as populações originárias que fazem parte do Brasil é uma imensidão até hoje. Línguas, culturas, saberes, modos de vida.

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E estamos falando apenas desse nosso canto no mundo. Se alargarmos para as Américas como um todo, o genocídio das populações originárias pode facilmente ser denominado como o maior da história.

Até hoje, essas populações originárias, que chegaram há milhares e milhares de anos nesse continente, séculos antes dos Europeus, tentam nos mostrar que o planeta não suporta o estilo de vida que o colonialismo exportou. Não temos como seguir chamando natureza de recurso. Não há como viver como vivem os estadunidenses sem que esse lugar que chamamos de Terra nos expurgue daqui.

Colar "índios" como categoria de pessoas subdesenvolvidas, desorganizadas e selvagens que apenas não tiveram tempo para evoluir e viver como "os brancos" é de uma ignorância atroz. Repetir que "índios" e cowboys lutavam utilizando uma forma única de batalhas é absolutamente revoltante. Achar que ver filmes produzidos em Hollywood pode educar alguém sobre qualquer coisa é também de uma falta de inteligência exuberante. Repetir que o Brasil foi descoberto é perpetuar uma mentira.

Estamos todos juntos e misturados habitando esse país tão rico e cheio de belezas. Hoje, o português Abel Ferreira tem como grande parceiro nesse trabalho absurdamente vitorioso que faz no Palmeiras um rapaz de origem indígena: Rony Rústico. É bonito ver esse tipo de aliança, de respeito e de afeto. Melhor ainda se compreendermos nossas origens para que possamos um dia nos emancipar como grupos e não apenas como indivíduos.

Palavras importam. Palavras têm peso de vida mas também de morte. Entender por que uma colocação aparentemente singela como "time de índios" fere um grupo de pessoas que desde 1500 vem sendo exterminado e aprofunda nossa ignorância sobre temas fundamentais à sobrevivência da nossa espécie é o que nos cabe fazer. Não é apenas por machucar grupos originários que precisamos deixar de usar esse verbete. É porque ele repete um padrão de ficção e de mentiras violentas que devemos combater em nome de não acabarmos com qualquer possibilidade de vida humana nesse planeta. Termino com James Baldwin: Fizeram a gente torcer para o cowboy sem nos contar que éramos os "índios".

Pesquisando para escrever esse texto me deparei com um vídeo bem bacana do dia em que uma pessoa indígena, torcedor do Palmeiras, visitou a academia. Deixo aqui o link.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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