Milly Lacombe

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Atentado contra Trump expõe a decadência e as contradições de um império

O candidato à presidência dos Estados Unidos Donald Trump sobreviveu a um atentado nesse sábado, 13 de julho. De imediato, as análises falam em "violência política". De Bush a Obama, passando pelo New York Times e demais veículos tradicionais, todos condenam o crime usando a expressão "violência política". Não é aceitável, segundo as vozes da razão, que esse tipo de violência aconteça no interior do país que é, para o resto do mundo, o grande exemplo de democracia. "Não há espaço para esse tipo de violência na América", dizem agora as instituições por lá.

Estamos diante de mais um caso de fabricação de consenso, expressão popularizada pelo linguista e ativista Noam Chomsky.

Violência política não pode ser confundida com violência contra políticos. São coisas bastante diferentes, e eu argumentaria que a primeira é infinitamente pior, embora as duas sejam condenáveis.

A questão é que sobre violência política não se fala a menos que um maluco resolva atirar contra um candidato presidencial nos Estados Unidos.

Se a violência for contra candidatos em países periféricos, bem, dane-se.

Os Estados Unidos mesmo já estiveram envolvidos em dezenas de tentativas de assassinatos e de assassinatos bem sucedidos de candidatos e de presidentes em exercício dentro de países que consideram inimigos, especialmente na América Latina. Tudo documentado, tudo devidamente registrado nos arquivos de seu exército, de suas agências e de seus governos.

Mas falemos sobre violência política.

Violência política é, por exemplo, exigir documento com foto para estadunidenses votarem sabendo que as pessoas que vivem nas regiões mais pobres - em muitos casos, nos bairros negros - não têm dinheiro para tirar um documento como esse. Custa, e não é barato para quem vive miseravelmente, portar identidade com foto por lá.

O voto é um direito de todos e encontrar uma forma de fazer com que qualquer um possa votar, inclusive analfabetos e pessoas abaixo da linha de pobreza, é obrigação do estado. Não ofertar um direito básico como esse, e se autodeclarar uma democracia, é violência política.

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É violência política, portanto, deixar cidadãos e cidadãs sem direito ao voto e, assim sendo, sem representação.

É violência política deixar cidadãos e cidadãs sem direito a saúde, água potável, transporte, educação. É violência política ser uma potência econômica e ao mesmo tempo apresentar níveis de pobreza assombrosos.

É violência política entregar serviços básicos à iniciativa privada sabendo que o lucro, e não a necessidade, passará a determinar o acesso. É violência política salvar bancos da falência e pagar bônus aos executivos que levaram esses bancos à falência enquanto autoriza-se que os mesmos despejem nas ruas famílias devedoras de hipotecas.

É violência política fornecer armas para que genocídios sigam acontecendo. É violência política invadir outros país e matar civis no momento em que fabricar uma guerra se torna necessário por motivos econômicos.

É violência política permitir a venda de fuzis e de munição a menores de idade e a pessoas comuns.

É violência política permitir que um homem denunciado por crimes sexuais seja candidato à presidência.

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É violência política bombardear com drones festas de casamento em países do Oriente Médio porque talvez, quem sabe, haja entre os convidados um suspeito de terrorismo.

É violência política chamar de terrorismo pessoas lutando contra o terrorismo praticado pelos países do centro do capitalismo mundial.

A atual fase do capitalismo neoliberal precisa de consensos fabricados para seguir escondendo tantas violências políticas de milhões de pessoas no mundo todo. Chamar o atentado contra Donald Trump de violência política faz parte dessa fabricação de falsos consensos em série. Trata-se de uma violência, sem dúvida. De violência contra um político que está abaixo de qualquer categoria minimamente decente de humanidade, mas, ainda assim, de uma violência. Já violência política, seria bom definirmos, é coisa bastante diferente de atentado contra um candidato.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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