Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Onde estavam as mulheres nas transmissões do futebol desse domingo?

A Cazé TV é o mais novo canal de transmissão de futebol para o mercado brasileiro. Um canal que acessamos pela Internet e que nasceu associado à imagem daquele de quem ela empresta o apelido, o comunicador carioca Casimiro Miguel. Casimiro ficou nacionalmente famoso fazendo seus vídeos de react de coisas aleatórias. Engraçado, inteligente, perspicaz, Cazé conquistou milhões com seu jeito original e debochado de reagir às coisas mais corriqueiras e mundanas.

Cazé, desde sempre, se mostra um rapaz conectado com as coisas mais decentes da vida. As lutas sociais, as causas das mulheres, dos negros, dos gays. Nunca escondeu suas inclinações políticas e já deu muitos "sai pra lá" nos desorientados que tentaram alardear preconceitos em seu canal.

Bem, podemos dizer que a chegada dele ao espaço de transmissões esportivas seria revolucionário no sentido de abrir as portas para as tantas minorias políticas que, apesar de serem consumidoras de esporte, são excluídas das transmissões ou participam delas em números apequenados. Mas, infelizmente, me parece que a Cazé TV enxerga a divesridade ainda sob a ótica das cotas. "Vamos colocar aqui um ou outro integrante dessa turma para que a gente não receba críticas".

Enquanto o pensamento for o de "cotas" pouca coisa vai mudar e, nas retas finais dos torneios, os mesmos sujeitos políticos se congratularão entre si sem nenhuma preocupação com a pluralidade. Foi assim na transmissão da final da Eurocopa: na moderna Cazé TV via-se apenas homens na bancada. Muitos homens bastante felizes da vida posando para fotos no ambiente que é deles por direito de nascença.

Ok, é um começo aceitável pensar em diversificar para evitar críticas e usando a ótica das cotas, mas já não basta porque é essa justamente a crença que acaba resultando em discrepâncias como as transmissões desse domingo, 14 de julho, nas quais só víamos homens.

O que precisamos agora é de gestores de comunicação que entendam que colocar diversidade nas transmissões é bom não apenas para a imagem da "firma", mas também para o alcance e o sucesso do negócio. Nem vou pedir que os gestores compreendam que colocar pluralidade tem efeito social revolucionário e benéfico. Claro que tem, mas deixemos isso para lá. Seria importante que esses executivos compreendessem que a pluralidade é boa para o sucesso do negócio.

E por quê?

Porque a democracia de pontos de vista enriquece o debate e um debate mais alargado traz mais audiência; uma audiência que hoje não se vê representada mas que consome esportes - especialmente futebol - fartamente. Não se trata de apagar vozes masculinas, especialmente aquelas que são muito boas no que fazem, mas de misturá-las a outras vozes, outras experiências de vida, outras visões, outras perspectivas, outros sentimentos. Em maior número, em números mais igualitários.

É também um sinal de respeito à diversidade da audiência porque, ao contrário do que muitos podem achar, a audiência não é feita apenas de homens exatamente como os que são maioria nas transmissões. Muito pelo contrário.

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Na Globo e no Sportv, as transmissões das finais da Euro e da Copa América tiveram também apenas integrantes do sexo masculino - todos cis - e eu tenho certeza que as mulheres que estavam assistindo pelo Sportv ficaram incomodadas, para não dizer ofendidas, quando narrador e comentaristas falaram da força do futebol espanhol citando apenas os homens e ignorando a Espanha campeã do mundo e o Barcelona vencedor da Liga dos Campeões.

Citaram até Carlos Alcaraz, que havia acabado de levar Wimbledon, mas nenhum feito realizado pelas mulheres. A uma certa altura, com a seleção espanhola recebendo suas medalhas das mãos dos executivos, do Rei e da geral engravatada, Erick Faria, de quem gosto muito, disse que queria fazer uma observação sobre o que estávamos vendo acontecer no pódio. Eu pensei: ele lembrou de Jenni Hermoso e do assédio que ela sofreu enquanto recebia a medalha das mãos do presidente da confederação de futebol quando a Espanha venceu a Copa do Mundo. Vai mencionar. Que bom que alguém vai falar sobre a tranquilidade de ser homem e passar pelo pódio sem o risco de ser abusado. Mas não. Erick queria falar que era bonito ver que a foto do time campeão não tinha dirigentes misturados aos atletas. Sim, verdade. Ele tinha razão. Mas ficamos esperando por uma análise mais democrática e ela não aconteceu.

Quando a transmissão acabou, no Troca de Passes, o comentarista Ramon lamentou a ausência do Brasil nas Olimpíadas esquecendo-se de citar que o futebol brasileiro estará lá sim: com as mulheres.

Outro baque. Outra tristeza. Outra decepção.

Se houvesse uma mulher na transmissão da final da Eurocopa no Sportv ela lembraria do crime contra Jenni Hermoso e, ao lembrar, faria com que milhões de mulheres que estavam na audiência se sentissem representadas. É também assim que o negócio se fortalece e aumenta a competitividade.

Mas, infelizmente, a mulher da transmissão estava mesmo apenas no palco: Shakira.

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Talvez estejamos dando alguns passos atrás na luta por inclusão. Talvez nossas conquistas estejam incomodando. Talvez pessoas em situação de poder não compreendam ainda como a pluralidade afeta positivamente o negócio, pensem limitados aos modelos de cotas e ajam mobilizados pelo único desejo de evitar críticas de feministas enfurecidas. Seja como for, a gente segue nas nossas jornadas, trabalhando de forma séria e incansável com um esporte que amamos - embora ele não nos ame de volta.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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