Milly Lacombe

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'Romário me deu uma surra de inteligência'

A frase que usei para dar título ao texto é do documentarista Bruno Maia. Maia passou alguns anos mais perto do ex-atacante e atual senador para conseguir dar forma a "Romário, o Cara", uma série documental de seis episódios que conta a jornada de Romário pela ótica do tetracampeonato mundial que completa 30 anos nesse 17 de julho.

Bati um papo com Bruno para saber mais sobre o tempo em que ele precisou mergulhar nessa personagem e, quando pedi para ele destacar um ponto sobre a complexa personalidade de seu objeto de interesse, ele me disse o seguinte: "Romário me mostrou uma capacidade muito grande de pensar sobre muitas coisas que, por mais que eu acompanhasse a vida dele e considerasse ele um cara safo, malandro e inteligente, não imaginava que fosse tanto".

Maia se encantou pelo futebol e pelo Vasco muito por causa desse cara que ele escolheu perfilar. Sem ter pais vascaínos ou sequer muito interessados pelo futebol, Maia conta que cresceu num Rio de Janeiro que fervia, e que Romário concentrava muitas dessas cores para olhar de um menino que tinha acabado de virar adolescente. "Eu guardo dele uma sensação de super-herói."

"A história do Romário entre 92 e 94 soa como uma mentira", me disse Bruno. "Se algum roteirista tivesse escrito, ele seria demitido porque não parece fazer sentido a sucessão de acontecimentos da vida de um ser humano em tão pouco tempo como foi nesses dois anos."

Quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo, Maia tinha 12 anos. O cenário nacional lidava com chacinas, sequestros, poupanças confiscadas fazia pouco tempo, derretimento social, morte de Senna. Para onde olhássemos, havia rupturas, medo, tensão. E da periferia do Rio de Janeiro vinha um rapaz cheio de marra, de autoconfiança e de personalidade que parecia se contrapor a tudo isso.

O documentário coloca essa marra em campo e mostra como, sem ela, Romário não teria atravessado os desertos que precisou atravessar. Sem ela, talvez não houvesse tetra, essa é a verdade.

Se aproximar de um ídolo é sempre perigoso porque a chance de nos decepcionarmos é grande. Maia conheceu um Romário diferente, cheio de complexidades, mas nada foi capaz de abalar o sentimento.

"Eu vi ali um cara tentando se desconstruir", conta. E a série documental passa essa impressão. Romário se examina, enxerga como reproduz machismos e ao mesmo tempo mostra que a caminhada é longa.

"Romário, como todo artista, é complexo. No conceito mais rico do termo, é um animal político mesmo. Existe nele um processo crítico real que talvez tenha sido desencadeado com o nascimentos das filhas."

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Mais exatamente de Ivy, com síndrome de Down.

"Eu acho que a Ivy cria um novo sentido para o Romário, um jogador que estava com 39 anos. Quando a Ivy nasce, ele estava naquele momento de não conseguir encerrar a carreira, tinha botado aquele objetivo do gol mil, a coisa se arrastava. O nascimento da Ivy parece que talvez tenha dado um outro sentido, outro objetivo, para ele poder sair de campo e ter alguma coisa pela qual lutar."

Os seis capítulos da série mostram algumas histórias de amor: a de Romário pelo jogo, a de Romário por ele mesmo, a de Romário por seu pai, a de Romário por Bebeto - ou vice versa - e a de Romário por Monica, sua primeira mulher.

Uma história de amor não deve ser medida pelo tempo que dura, mas pelos efeitos que causa nas pessoas. A de Romário com seu pai foi longa; a com Bebeto nem tanto. Já Mônica representa um ponto sensível na série não apenas por ser a única mulher em cena - para ser justa, a colega Marluci Martins dá um depoimento rápido -, mas também porque fica fácil supor que sem Mônica talvez não houvesse Romário.

Os dois se casaram ainda adolescentes e, muito jovens, foram sozinhos enfrentar o frio e o desconhecido na Holanda para que Romário jogasse no PSV. Era ela que fazia com que o garoto da praia, do sol e da bagunça pudesse ter um lar em Eindhoven. Sem esse lar, será que Romário teria conseguido conquistar tudo o que conquistou por lá? Romário tinha o trabalho e o estrelato; Monica, a sombra dos bastidores.

Maia conta que Mônica é personagem central na série. "Não tinha ninguém perto dela pra ajudar nessa caminhada, num universo que não tem mulheres, uma língua que não era nem parecida com a dela. As pessoas veem a série e falam muito do Zagallo, que não quis dar depoimento, deixando de enxergar a força da Monica. Eu sou apaixonado pela participação dela."

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Além dos depoimentos sobre os momentos que passaram juntos na Holanda, sobre o tetra e sobre a vida que hoje ainda compartilham porque têm netos juntos, foi Monica que, sem querer, ofertou a Maia o final da série.

Sem dar spoiler, o que podemos dizer é que Monica fez um trato com ela mesma a respeito da possibilidade de Romário e da seleção ganharem a Copa. Um trato de dignidade com ela e com o então marido, um trato de honestidade com a história deles. Não contou a Romário, não contou a ninguém. Sabendo o que aconteceria se o Brasil fosse campeão, viu a disputa de pênaltis com tensão extra. Ao final, só ela sabia que, quando Baggio chutou aquela bola para fora, a vida dela e de Romário jamais seria a mesma.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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