Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

A incrível sorte de ser filho de um treinador de futebol

Titinho, Dorivalzinho, Ramonzinho. Os filhos de Tite, de Dorival Jr. e de Ramon Diaz estão empregados em alguns dos maiores clubes do Brasil. Tem um deles que está na seleção. Os papais dizem que os filhotes estão ali em suas comissões técnicas por mérito. Dizem essas coisas e nem coram. Dizem como quem acredita. Mérito. É a tal da da meritocracia, essa ficção neoliberal.

Os filhões dão entrevistas no pós-jogo e também chiliques à beira do gramado. Papais autorizam tudo com orgulho. Chegaram com eles, sairão com eles.

Seriam Titinho, Dorivalzinho e Ramonzinho os mais competentes para as funções que estão exercendo?

Bem, jamais saberemos. Vieram com o pacote.

O que não quer dizer que deixem de ser bons no que fazem. O que não exclui que tenham talento. O que não impede que sejam acima da média.

De concreto sobre Titinho o que sabemos é que ele saía por aí todo pimpão curtindo postagens de alto teor machista, misógino e transfóbico nas redes sociais. Disso sabemos com força porque há provas materiais. Foi flagrado, apagou as curtidas e nunca mais ninguém falou sobre isso. Nem filho nem pai.

Uma vergonha sob qualquer parâmetro. Deveria ser motivo de demissão por justa causa. Que clube íntegro pode tolerar esse tipo de comportamento? E a seleção nacional? Pior ainda já que a seleção representa a totalidade de um país e não apenas homens heterossexuais. Mas, na época, parece que papai segurou o filhão no cargo.

Tite e Dorival levaram suas crias para trabalhar na CBF onde deveriam estar apenas os melhores dos melhores dos melhores.

Tite, na verdade, deu uma ajuda a Dorival porque quando foi chamado para ser o treinador a CBF tinha em seu código de ética uma cláusula que impedia que parentes de funcionários fossem contratados. Ah, mas isso pode ser mudado, não é mesmo? Vamos alterar essa cláusula para o senhor, professor. O Titinho pode vir sim. Temos nossos princípios, mas se não gostarem produziremos outros (salve Marx. O Groucho, calma, pessoal).

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Cláusula alterada, Titinho e Dorivalzinho tiveram carta branca para brilhar ao lado dos papais.

O que há de errado com isso?

Bem, sabemos reclamar quando o nepotismo está na dimensão da esfera pública. Mas na dimensão da privada não ligamos muito. Se o cara nasceu tendo a sorte de ser filho de treinador consagrado o caminho está livre para ser milionário sem esforço e sem que precisemos saber se o cara é bom no que faz.

Dane-se que muitos e muitas cursaram faculdades de educação física com melhores notas. Dane-se que muitos precisaram se esforçar mais. Dane-se que haja tantos e tantas buscando emprego portando melhores currículos. Não tem o sobrenome certo? Se esforça mais então. Quem quer, consegue. Basta tentar bastante.

Mas, vejam, se for mulher aí melhor nem tentar muito não porque é dar murro em ponta de faca. Ou já viram mulher assistente de treinador de time profissional de futebol masculino? Médica, vá lá. Psicóloga, aí sim. Mas basta.

Isso quer dizer que todo filho está condenado a uma vida que não tenha nada a ver com a de seu pai ou de sua mãe mesmo que ele ou ela reúnam aptidão para aquela função?

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Não, claro que não.

Eu mesma sou jornalista como um dia meu pai foi. Seguimos por trilhas diferentes, mas eu preciso reconhecer que meu primeiro emprego foi ele que conseguiu. Eu estaria aqui não fosse filha dele? Provavelmente não. Num mundo justo, por melhor que eu seja, eu teria que ter lutado bem mais e enfrentado concorrências muito maiores. A cor da minha pele me fez largar à frente de muita gente nesse Brasil racista.

Há casos um pouco diferentes.

Recentemente, Tamara Klink decidiu cruzar o Atlântico em um veleiro. Foi falar com o pai para saber se ele emprestaria o barco e a ajudaria. Amir disse um categórico não para todos os pedidos. Tamara pegou dinheiro emprestado com um conhecido, comprou um barco de mais de 30 anos de idade, reformou tudo com as próprias mãos e cruzou o oceano sozinha.

O pai estava esperando por ela no porto em Recife e eles se abraçaram quando a filha de 24 anos chegou depois de 15 dias enfrentando ventos, ondas e perrengues de todos os tipos. Sabemos que Tamara é mulher cercada de privilégios e ela de fato não tem culpa de ter nascido onde nasceu. Mas na hora em que decidiu cruzar oceanos o pai não a protegeu. Pelo contrário. Disse um sonoro "se vira".

"Ah, mas o sobrenome ajudou". Eu argumentaria que não. Na Europa, onde ela estava tentando cavar sua aventura, Klink é apenas um barulho. E ela ainda lutou contra o machismo e a misoginia de quem disse a ela: você jamais conseguirá, desista.

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Tamara é filha de um dos maiores navegadores do mundo e não pediu para nascer nessa situação. Cresceu sobre o mar, foi educada para ver o mundo com olhos de uma aventureira. Sim: privilégios. Privilégios não são um pecado em si. Eles passam a ser quando sentamos sobre eles e apenas usufruímos.

Privilégio gera oportunidade e oportunidade gera responsabilidade. Tamara está em sua luta para conscientizar o mundo sobre aquecimento global e outras tragédias. Ela dá palestras, entrevistas e escreve sobre o tema. Me parece um exemplo de privilégio desdobrado em responsabilidade.

Tudo certo em herdar do pai ou da mãe o desejo por uma trilha desde que reconheçamos que nenhum filho ou filha herdam de pai ou de mãe o sonho de ser pedreiro ou faxineira. Portanto: desde que não deixemos de enxergar as regalias dentro das quais nascemos aqueles que podem se dar ao luxo de sonhar em ter profissões parecidas com o de nossos pais. Mas pede-se que, no caso, você tenha coragem de fazer o seu próprio caminho e, nessa luta, alargar a estrada para que muitos outros possam passar.

Já nossos queridos filhões de treinadores não vão por aí. Eles literalmente estão na barra das calças de seus papais. Permanecem no ninho. Não fazem nada de diferente. Não buscam rotas alternativas. Não se implicam em transformações. Não falam nada de original, de desrruptivo. Seguem agarrados em seus privilégios sem mover uma palha para mudar o cenário machista, misógino, racista e LGBTfóbico do futebol. Muito pelo contrário; como vimos no caso de Titinho, parecem estar confortáveis com as coisas do jeito que são.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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