Milly Lacombe

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Dia de celebrar o centenário de um dos mais geniais entre nós

Nesse 2 de agosto de 2024 o pensador James Balwin faria 100 anos.

O estadunidense James Baldwin levou a reflexão sobre o racismo a lugares inéditos. Sozinho, tirou muitos véus que cobriam os olhos da sociedade e amplificou a luta antirracista oferecendo ferramentas que não tínhamos. Escreveu livros, romances, peças e ensaios. Tudo o que tem sua assinatura precisa ser lido. Saiu do Harlem, em Nova York, para viver nas ruas de Paris e voltar para casa já como um autor consagrado. Bissexual, inquieto, original, cínico, brilhante, genial. Morreu em 1987 aos 63 anos.

O episódio que para mim melhor resume a inteligência e a sagacidade de Baldwin é a participação dele num desses programas de Talk Show no qual Baldwin debateu com um professor de filosofia de Yale. Um homem branco que foi apresentado por Dick Cavvet, o âncora, como o melhor professor que ele conhecia. Antes do tal professor entrar no estúdio, Baldwin estava explicando por que as coisas ainda eram bastante ruins para os negros estadunidenses naquele momento histórico (anos 60). Com paciência, desdobrava o racismo para Cavvet e para a audiência.

O professor entra em cena soberano. Senta-se ao lado de Baldwin e começa dizendo que estava nos bastidores escutando o que ele dizia e que não concordava. Adota uma postura educativa deixando claro que está ali para ensinar Baldwin sobre a vida. Sai falando que o grande desafio é se tornar um homem, e que o desafio é igual para negros e brancos. Baldwin tem as pernas cruzadas de forma elegante e escuta com um sorriso no canto da boca como quem sabe o que está prestes a acontecer. O professor de Yale segue falando do alto de seu status de intelectual branco.

Baldwin, cigarro na mão, espera que o interlocutor acabe de falar e então explica que ele não estava discutindo nada parecido com aquilo. Ele estava falando do risco de morte que existe na sociedade americana quando um homem negro tenta se tornar um homem. O intelectual interrompe Baldwin e diz que ele está exagerando diferenças que não existem porque, vejam, no caso de ambos eles eram mais próximos por serem intelectuais do que por terem a pele diferente. Por que sempre focar na cor da pele?, pergunta o professor como quem dá um xeque-mate. "Você não é apenas um negro, você é um autor", diz o intelectual. A audiência aplaude. O professor se recosta na cadeira como só os vitoriosos sabem fazer. Baldwin observa até compreender por onde precisa seguir para dar àquele senhor o que ele precisa ouvir.

"Sou o mais velho de nove filhos", Baldwin começa dizendo. "Sou um dos poucos sobreviventes da minha geração. Em algum momento você entende que não pode mais ser controlado pelo que as pessoas brancas pensam sobre você." O professor interrompe e diz que todos precisam pensar por conta própria sobre si mesmos, que isso é igual para negros e brancos. Finalmente, Baldwin perde a paciência. O que temos a seguir é uma das maiores declarações já disparadas em um debate ao vivo:

"Eu não tô nem aí para o que Ronald Regan [então governador da California) pensa sobre mim. Acontece que ele tem o poder de destruir minha vida, e a vida e a vida dos meus filhos e isso é dado a eles pelo Estado. Não estou falando de mim como escritor. Claro que sou escritor, eu sei disso. E o que me construiu não foi Charles Dickens ou outro de seus colegas, foi Beth Smith e Ray Charles e meu pai que era um pastor e minha mãe que cantava. O espaço que existe entre mim e minha experiência é muito maior do que o de qualquer pessoa branca".

O intelectual, já enfadado, diz: não acredito nisso. E Baldwin segue:

"Eu sei que você não acredita. Vou te dizer uma coisa. Quando eu deixei esse país, em 1948, não me interessava para onde eu ia, se Hong Kong ou Timbuktu. Acabei em Paris, nas ruas de Paris, com 40 dólares no bolso e a teoria de que nada de pior poderia acontecer comigo ali do que tudo o que já tinha acontecido comigo aqui. Você fala em se tornar um autor por conta própria mas nesse caso eu teria que tirar todas as minhas antenas porque se quem dá as costas para essa sociedade pode morrer. E é muito difícil sentar na frente de uma máquina de escrever e se concentrar se você está aterrorizado com o mundo ao seu redor. Os anos em Paris fizeram uma coisa por mim: me tiraram desse estado de terror social que não é uma paranoia, mas um perigo social real que está no rosto de todos os policiais, de todos os chefes, de todo mundo. O que você está me sugerindo aqui é o impossível. É acreditar na boa vontade. Eu não sei o que a maior parte das pessoas brancas desse país sentem, mas eu só posso imaginar o que elas sentem pela atuação de suas instituições. Eu não sei se cristãos brancos odeiam negros ou não. Tudo o que sei é que temos uma Igreja cristã que é branca e uma outra que é negra. Eu não sei se os sindicatos e suas chefias me odeiam, o que sei é que não faço parte do grupo deles. Não sei se o setor imobiliário detesta os negros, o que sei é que o setor imobiliário me mantém nos guetos. Eu não sei se o ministério da educação odeia pessoas negras, mas eu sei quais livros eles azem meus filhos lerem e as escolas que ele nos fazem frequentar. Aqui te dou as evidências. E você pede que eu, num gesto de pura fé, arrisque a minha vida, a da minha mulher, a de meus filhos, das minhas irmãs diante de um idealismo que você garante que existe nesse país mas que eu nunca vi.

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E assim, sob aplausos e o completo silêncio emburrado do professor de Yale, que disse não ter resposta, foi encerrado o debate.

Viva o centenário de James Baldwin. Um absoluto gênio que passou por aqui e deixou, ainda bem, um enorme legado.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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