Você é suficientemente mulher?
O que é ser uma mulher? É ter cromossomos XX? É ter um índice de testosterona aceitável? Aceitável por quem? É usar vestidos? Ter cabelos longos? Não falar muito alto? Sentar com as pernas fechadas? Usar maquiagem? Não falar palavrão?
O que é ser mulher?
A história envolvendo a boxeadora argelina Imane Khelife em Paris é uma aberração em múltiplas camadas. Mas é também reveladora de opressões que dizem respeito a todas nós, mulheres.
Em esportes de alta performance ser mulher significa zerar um tal teste de gênero. Um teste feito em bases que Menguele aprovaria. Porque há mulheres cuja carga genética é XY. Assim como há homens que são XX. Porque há mulheres com muita testosterona e outras com pouca.
(Aliás, você sabe o que você é a nível cromossômico? Já fez seu teste?)
Há mulheres que nascem com vagina e testículos internos. Há homens que nascem com pênis e ovários.
Essas pessoas não são aberrações. Elas estão aí. Já viu uma pessoa ruiva? Então você certamente já viu uma pessoa com características como as citadas acima. Estudos mostram que existem no mundo basicamente as mesmas quantidades de ruivos e de pessoas com múltiplas formações sexuais. Isso se você mesmo não for uma dessas pessoas. Muitas só descobrem depois de velhas.
Não há nada de errado aqui. O que é completamente errado é achar que serão homens e instituições comandadas por homens que dirão o que é ser suficientemente mulher.
Marta não é igual a Sissi. Graff não é igual a Navratilova. Formiga não é igual a Thamires. Bia Ferreira não é igual a Angela Carini. Todas mulheres. Nesses casos, todas mulheres cisgênero, exatamente como Imana Khelife, a boxeadora argelina.
Até aqui não há consenso em como introduzir no esporte de alta performance atletas trans. Esse é um debate inadiável e fundamental. Que não será feito nesse texto.
Eu fui uma menina que jogava bola na rua, brincava com revólver, usava capa de super-heroi, saia no braço com meninos. Tinha o cabelo curto e jogava bola bastante bem para poder ser escolhida antes de quase todo mundo. Era corriqueiramente chamada de menino. Faziam por não me perceberem como menina, afinal eu não estava brincando de boneca, e também faziam de maldade. Pais e mães de meus colegas. Minha mãe, que detestava que eu jogasse futebol, virava uma leoa e saía ameaçando bater em quem me ofendesse publicamente.
Crescer assim não é das coisas mais saudáveis. Havia dias em que a tristeza era maior do que eu podia assimilar ou elaborar. A sensação de desencaixe é devastadora. Nunca pensei em me matar, mas, ainda pequena, entendi que não me importaria se tudo acabasse porque era difícil viver em um mundo com essas regras. Eu era uma criança.
A histeria que tomou conta do caso Khelife - uma mulher cisgênero como eu - repercute que é preciso haver um ambiente de igualdade nas disputas.
Hipocrisia.
Todos sabem que o esporte é feito de desigualdades. Haverá as mais fortes, as mais fracas, as mais altas, as mais baixas. Não incomoda quando Phelps vence tudo porque ele é suficientemente homem. Não incomoda quando Graff ganha tudo porque ela é suficientemente mulher. Mas Sissi incomoda. Serena incomoda. Formiga incomoda. Bia Ferreira incomoda. Khelife incomoda.
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Quero receberAssim que uma atleta que não corresponde à cartilha do feminino passa a vencer começa a gritaria. Não é suficientemente mulher!
Há muitas formas de ser mulher e querer nos manter em jaulas é delinquência de um sistema que precisa morrer para que parem de nos matar.
É perversa a disciplina que obrigar mulheres a usarem determinadas roupas, serem delicadas, preservar o cabelo longo, ser magra, usar maquiagem etc etc etc. Muitas ele nós não queremos, muitas fazemos detestando fazer, muitas nem sabemos que podemos nos emancipar desses parâmetros machistas e misóginos que dizem o que é ser mulher.
O episódio envolvendo Khelife diz bastante a respeito de todas nós. Não olhe para Khelife achando que ela e você são coisas muito diferentes. O regime que agora quer eliminá-la do esporte é o mesmo que nos silencia, nos esmurra, nos abusa, nos estupra, nos mata diariamente. No espelho em que a argelina se olha aparece o meu e o seu rosto.
"Como mulher eu não possuo país. Como mulher, meu país é o mundo todo."(Virginia Woolf)
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