Milly Lacombe

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Em Paris, mulheres ensinam a amar

Primeiro teve Rayssa Leal pedindo que não secássemos suas adversárias porque eram amigas dela. Depois teve as ginastas de países diferentes torcendo umas pelas outras e flagradas pelas câmeras. Teve a alienígena Simone Biles rendendo elogios à categoria de sua maior rival, Rebeca Andrade. Teve jogadora de handebol brasileira carregando no colo a jogadora de Angola. Teve Biles e Chiles ajoelhadas para o pódio de Rebeca. Teve Bia Souza sendo abraçada com afeto pela israelense que ela tinha acabado de derrotar. A mesma Bia que é treinada hoje pela ex-rival. Teve o time da Espanha consolando Marta, expulsa depois de falta grave. Teve jogadora do outro time indo abraçar Putellas e pedindo uma foto.

Teve mais, mas vou parar por aqui porque acho que listamos o bastante.

Nós, mulheres, crescemos ouvindo o mantra de "mulheres não sabem ser amigas". Desde cedo o mais tonto dos homens aprende a nos jogar umas contra as outras. É uma ferramenta bastante usada, usada pelos caras mais bacanas, usada por quem se declara aliado. Uma vez colocadas em rota de colisão, a treta entre mulheres vira destaque em todos os lugares, de fofocas ao noticiário. E assim uma mentira se transforma em verdade.

O feminismo nos dá a linguagem para escapar dessa cilada. E, ao escaparmos, a gente percebe como viveu dentro de uma mentira. Não há no mundo força maior do que a da amizade entre mulheres. Quando mulheres se apoiam tudo passa a ser possível. Inclusive a maior do mundo se curvar à sua grande rival em gesto de nobreza inédito e público, para chilique de alguns homens.

Mulheres que praticam esportes, especialmente esportes que já foram proibidos para elas, se unem na noção de que conseguiram o que um dia parecia impossível. A rivalidade cai para outro plano. O tecido que as liga é feito da consciência de que estarem ali já é uma vitória, de que muito foi conquistado, de que devemos agradecer umas às outras e às nossas antepassadas.

É claro que também brigamos e nos indispomos entre si. É claro que somos capazes de não curtir outras mulheres. É uma característica humana e não feminina. Podemos nos indispor uns com os outros. Podemos não nos curtir. Podemos tretar. Mas nada disso é uma característica do gênero feminino como nos é vendido desde sempre. O que a sociedade faz bem é promover e divulgar as tretas entre mulheres, e esconder o afeto e a união. Mas, se você estiver prestando atenção, já terá percebido que, em Paris, o amor entre mulheres está no ar e não pode ser ocultado.

Sabe o que nos faz agir assim? O entendimento de que nada está ganho.

No dia em que Rebeca virou a maior atleta olímpica do Brasil teve narrador de TV que achou ser seu direito voltar a chamá-la de peituda.

Não importa que muitas feministas tenham alertado para o erro de usar como suposto "elogio" uma parte do corpo. Não importa correr o risco de sexualizá-la. Ele quer chamar assim e ele vai chamar assim. Os parças gostaram, riram, deram apoio. Então, para ficar bem com os caras, ele vai usar sim a palavra de novo. Não encham, suas chatas! Ele não chama homens de peitudos, nunca chamou. Mas se quiser chamar uma rainha de peituda esse é seu direito de nascimento. E não se fala mais nisso.

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No dia em que Tatiana Weston-Webb ficou com a prata no surfe teve comentarista na moderna Cazé TV querendo saber como assim o rímel não sai na água, gente? Como vocês fazem pra deixar a maquiagem inteira mesmos debaixo d'água? (dá um Google, mané).

Mas o mané não vai dar um Google não. Em vez disso vai usar o tempo de transmissão para não falar de surfe e falar de rímel. Na sequência, os mesmos manés disseram que Tati Weston-Webb sabe muito porque certamente aprendeu com? o marido! O marido, Brasil! Porque o marido é demais, eles disseram. O marido é o cara! Manja muito. Se eles querem rasgar elogios para o marido enquanto Tatiana se prepara para ganhar uma medalha, assim será.

Não foi com a mãe dela que ela aprendeu não, tá. Embora a mãe tenha sido sua mentora. Foi com o maridão, meu povo.

Como se não bastasse, os mesmos alecrins disseram durante a transmissão que amariam ser casados com mulheres que ganhassem mais do que eles (amariam sim, sem dúvida, certeza absoluta). Comentários mais superficiais do que as camadas de coral de Teahupoo.

Teve o excelente treinador da seleção brasileira de futebol feminino achando de bom tom citar o nome de três jornalistas na coletiva de imprensa de modo crítico. Não importa que sejam jornalistas que sempre apoiaram o futebol feminino e nem que elas tenham feito suas críticas com todo o respeito. Se o cara quer jogar mulheres aos leões - e inclusive contra o seu próprio time de mulheres -, assim será.

O querido não citou os jornalistas homens que criticaram seu time de forma veemente e muito menos aqueles que desde sempre ridicularizam o esporte. Ele decidiu citar nominalmente só mulheres mesmo e, assim, colocá-las em rota de colisão com seu elenco. Ele pode. Ele é homem. O que não pode é mulher querer criticar o trabalho dele. Homem pode. Mulher não.

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Para fechar, teve o repórter engraçadinho da Cazé TV metido em um colant para entrevistar Rebeca. Não podemos des-ver.

Tudo isso na mesma olimpíada em que uma mulher negra virou a maior atleta brasileira da história.

Então a gente sabe que, mais do que medalhas, performances e pódiuns o que está em jogo é nosso direito de existência. Todas nós sabemos disso, de Angola ao Afeganistão. Da Austrália à África do Sul. Do Marrocos a Cabo Verde. Da França ao Japão. Por isso as imagens de mulheres se amando não deixarão de chegar de Paris.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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