Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Pablo Marçal não é a doença e sim o sintoma

Fico surpresa com quem se surpreende com a popularidade que o discurso do candidato à prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal, alcança. Usando apenas a análise de um passado recente seria bastante fácil compreender que, com a naturalização de Jair Bolsonaro, estava aberta a possibilidade de conhecermos alguma coisa ainda mais radical na sequência.

E por que?

A resposta curta e simplória deveria dizer: porque não se naturaliza uma aberração impunemente. Não se joga para dentro do campo democrático aqueles que defendem valores fascistas. E vejam: o uso do termo não é irresponsável. O fascismo é um projeto de sociedade e a extrema-direita no mundo inteiro está organizada para colocar em prática esse arranjo que fala em Deus, em pátria e em família. Um Deus punitivo, uma pátria entreguista e uma família na qual papai manda e frequenta trabalhadoras sexuais e mamãe obedece e não reclama.

A partir do momento em que as ideias de Jair Bolsonaro são aceitas como pertencentes ao campo democrático e recebem autorização para circular livremente está criada a condição para que elas se radicalizem no próximo hospedeiro.

Já a resposta longa deveria contemplar a explicação dos motivos que levam tanta gente a apoiar as ideias absurdas dos políticos de extrema-direta. Verdade que o Brasil tem um passado fascista bem fincado em suas bases, mas acreditar que quase metade dos eleitores dessa turma extremista seja formada por fascistas e por ignorantes é entregar o jogo ganho para o campo deles.

Despacito.

Acho que não há quem discorde da seguinte afirmação: o processo insurrecional mudou de lado e ele hoje pertence ao campo da extrema-direita.

No mundo inteiro, é a extrema-direita que se transformou na verdadeira força revolucionária se por revolução entendermos a luta para romper com o sistema vigente usando para tanto qualquer método possível.

Podemos seguir berrando contra o horror das práticas violentas dos extremistas de direita ainda que de nada estejam adiantado todos os nossos vários tuítes.

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Em vez de gastar tempo apontando o dedo para os candidatos da extrema-direita como Pablo Marçal seria prudente que tentássemos entender por que as coisas que dizem os candidatos que beijam a mão do fascismo alcançam tanta conexão. É esse entendimento que criará ambiente para que a extrema-direita possa ser derrotada.

Eu poderia começar dizendo que a esquerda mundial optou por chegar ao poder e administrar as crises do capitalismo sem falar a respeito da falência de um sistema que permite que oito pessoas possuam a mesma riqueza de 3,5 bilhões de outras. Grécia, Inglaterra, Estados Unidos de Obama, França são exemplos bem acabados de uma esquerda entreguista e sem ideias. Mas fiquemos no Brasil recente porque ninguém aqui tem tempo para recuar além disso.

Lula 1 e Lula 2 mudam a cara desse país. Muita gente é colocada para dentro da classe consumidora, a economia decola, o Brasil parece encontrar um caminho. Pela primeira vez, cotas raciais fazem alguma reparação ao passado tenebroso dessa nação. Agora vai. O Cristo decola na capa da The Economist, o mundo aplaude.

Mas vem 2013 e a esquerda no poder falha em avaliar o cenário, optando por se martirizar.

Fizemos tanto e eles não reconhecem nosso esforço. Uma narrativa infantil que se recusou a encarar o Brasil que nascia: um Brasil que, tendo pela primeira vez recursos financeiros, tirou os filhos da escola pública e colocou na privada. Que saiu do SUS e foi para os planos privados. Que deixou o transporte público e comprou seu carrinho. Em vez de perceber que esses movimentos eram sinal da falência do tecido social, a esquerda que chegou ao poder foi se sentar à mesa dos grandes empresários e latifundiários que, com ela, ficaram ainda mais ricos pelos motivos acima explicados.

Nada de reforma fiscal ou política. Nada de socializar as transformações. Nada de repensar a propriedade. Nada de usar a popularidade de quase 90% para fazer o Brasil alargar o espaço público, taxar grandes fortunas como pede a constituição. Nah! Deixa disso, sabemos trabalhar na conciliação. Uma esquerda que, como sugeriu Vladimir Safatle, teme dizer seu nome. Uma esquerda alienada de suas pautas e valores. Uma esquerda amedrontada e em busca de aprovação por parte de uma oligarquia que precisa morrer para um nove Brasil nascer.

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As transformações sociais que passaram a depender exclusivamente do setor privado para serem aprimoradas, obviamente, acabaram. Escolas privadas, sistema privado de saúde, transporte privado.

Chega, disse o sistema. Vamos fazer um grande acordo nacional, com todas as frentes. Tchau, querida.

O Brasil volta a afundar em crises. A população, que não é burra, percebe que está sem representação política e que o modelo econômico privilegia grupos muito pequenos de homens muito ricos. Dilma, eleita para aplicar uma determinada agenda, erra a gaveta e pega o plano econômico de Aécio para tentar se manter no poder. A classe trabalhadora quer romper com tudo, não aguenta mais ser precarizada, não aguenta mais acordar tão cedo e dormir tão tarde sem ter folga, não aguenta mais se sentir fraca, desorientada e adoentada. Quem vai falar com ela sobre colocar no chão esse sistema?

Bolsonaro vaza e a auto proclamada esquerda volta ao poder achando razoável explorar petróleo na Amazônia, não colocar políticas reprodutivas na agenda, com a ojeriza de sempre à palavra aborto, acreditando ser mimimi pedir mulher negra no STF, pregando a divina palavra da austeridade fiscal. E vai para novas rodadas de conciliações e acordos. Tem que ser assim, dizem. Se não for assim não tem jeito. Um lado radicaliza (a direita), o outro assopra (a esquerda).

O pobre do motorista de aplicativo vestido com sua camisa amarrotada olha em volta e não escuta ninguém falar com ele sobre classe, sobre como sair desse cotidiano dilacerante, sobre direitos trabalhistas, limites de horas de trabalho, férias, seguro saúde etc. Quem o alcança fala de gênero, de masculinidade, de defender a família.

A esquerda no poder abraça a austeridade, fingindo acreditar - ou de fato acreditando - que ela oferece uma saída. Nunca aconteceu, mas vamos seguir tentando. Nesse ponto da conversa alguém sempre berra Coreia do Sul e Israel! sem lembrar que ambos são países que vivem dentro da lógica de uma guerra eterna e, por causa dela, são mundialmente amparados pelo eixo Estados Unidos-França-Inglaterra para o que for preciso.

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Pelo mundo inteiro, autores, economistas e pesquisadores sérios tentam explicar que optar pela austeridade é perversão. Não adianta. A esquerda mundial se rende a ela. Vamos seguir tentando. Coloca só mais um teto de gastos aí pra gente ver uma coisa.

A miséria se alastra. Estamos exaustos e exaustas. Enquanto uma parte do mundo queima a outra inunda. Semestre que vem inverte tudo. O Sul queima, o Norte alaga. Sensação de fim de mundo. Ar intoxicado. A despolitização varre o planeta: Político é tudo igual. Tudo corrupto. Ninguém muda nada, querem apenas poder. Tudo la même merde, como dizem lá em Paris.

Vem a extrema-direita e declara com brutal honestidade: é isso, pessoal. O mundo acabou, ninguém vale nada. Agora é cada um por si. É você e sua família. É você e sua masculinidade. Você pode não saber muita coisa, mas sabe o que é ser homem macho. Vai deixar sua família padecer? Cola na nossa e vem. Aqui é Deus contra a rapa. Esquece o estado. Ele alguma vez já te deu qualquer coisa duradoura? Então deixa de ser trouxa. Tá pagando imposto porque é idiota. A gente tem a solução. Chega junto no culto. O trabalho duro é a saída. O trabalho dignifica o homem. Olha em volta que você vai achar um templo pra chamar de seu. Tem um bem pertinho de você. Ou o pessoal da esquerda já passou por aqui para trazer mais postinho e escola grátis? É a igreja que pode te acolher, não o estado. Esquece escola porque lá eles acabam com a família com esse negócio de ideologia de gênero. E na vida tudo o que você tem é a sua família. Cuida dessa mulher que lava tua louça e prepara teu jantar. Ela é sua, não perde ela de vista. Bate se for preciso mantê-la na linha. É para o bem dela. O mundo lá fora é uma selva. Não tem mais jeito. Mas com a gente pelo menos você vai se salvar.

Parece um discurso sem pé nem cabeça mas ele se estrutura numa lógica evidente: vamos romper com tudo isso aí porque, claramente, não deu certo.

A defesa da família cristã é feita por homens que se casaram quatro vezes e acham que podem dizer que pintou um clima com uma criança de 14 anos. Mas isso não vem ao caso. Não reverbera. Qual homem nunca deu uma escapadinha? Qual homem nunca olhou uma garotinha passando na rua? Parecia ter mais idade, gente. Para com isso. Homem é homem, mulher é mulher.

A direita coloca o gênero em debate, a esquerda faz que não escuta, não é com ela esse papo. É a economia, estúpidos. Vamos fingir que não estamos vendo as eleições estadunidenses se transformaram num referendo de papeis de gênero.

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Há cinco décadas é sabido formalmente que o capitalismo neoliberal não pode produzir igualdade. Há 50 anos sabemos, por meio de muitos estudos, que se o mundo inteiro adotasse o regime estadunidense o planeta nos expurgaria daqui. Não há estrutura para isso. Precisamos de cinco planetas terra para viver mais ou menos como vivem lá na Califórnia considerando a hipótese de que um dia o sistema poderia dar vida digna a todos. Não pode. Só existe riqueza excessiva porque existe miséria, essa é a articulação. A única relação entre capitalismo e democracia é a contradição porque, com o acumulo de riqueza e de poder, as leis passam a ser feitas e executadas por um grupo mínimo de homens e todo o resto da população deixa de ter seus interesses representados.

Enquanto isso, a lógica das redes sociais é dominada pela extrema-direita. O discurso sério não tem mais sentido. O que vale é o absurdo. O algoritmo quer o absurdo não a coerência. Musk, Marçal. Faz o M.

A imprensa que igualou Bolsonaro a Lula segue inventando simetrias inexistentes e, com isso, naturalizando o horror antes de sair por aí lavando as mãos como se nada tivesse feito. Agora tem Marçal de um lado e, vejam, Boulos do outro.

Marçal fala com a turma que, exausta e desesperada, assina a revolta. Dane-se tudo. Vou sair de moto sem capacete mesmo. Faz o M! Podem tirar minhas redes sociais do ar. Faço outras e sigo dizendo as mesmas coisas. Sou um perseguido, assim como você. Faz o M se você também tá putaço com esse sistema injusto aí. Vou te ensinar como ficar rico e parar de sofrer.

Assim como Marçal, Bolsonaro falou com essa turma que o pacato discurso da esquerda já não alcança. Outros virão e falarão com essa turma. Enquanto isso, Boulos é repaginado para falar manso e agradar. Faz um coraçãozinho aí. Aborto? Ah, gente, para, vai. Isso é detalhe. Coisa de feminista que quer sequestrar a pauta. Gaza? Grandes fortunas? Reforma agrária? Jornada de trabalho menor? Não quero falar disso não. Quero falar de empreendedorismo periférico.

Tratar de políticas reprodutivas não é um detalhe. É base de processos de transformação social e dignidade familiar. É alcançar a real família brasileira, a mãe solo da periferia, a mulher trabalhadora. Falar de gênero não é um detalhe e é gênero que vai decidir se Trump ou Harris será o novo presidente dos Estados Unidos. Oferecer ao motorista de aplicativo algum caminho possível para que ele possa existir com dignidade sem precisar trabalhar 15 horas por dia sete dias por semana e sem achar que tudo o que ele pode controlar na vida é sua masculinidade machucada pela luta de emancipação das mulheres não é um detalhe. Mas quem se importa?

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Guilherme Boulos é um jovem político competente cuja dissertação de mestrado é das coisas mais relevantes já apresentadas em tempos recentes no campo da saúde mental: "Estudo sobre a variação de sintomas depressivos relacionada à participação coletiva em ocupações de sem-teto em São Paulo". Boulos e Marçal são opostos em tudo, feitos de substâncias completamente diferentes em cada célula. Boulos representa uma possibilidade de futuro; Marçal, o completo rompimento com qualquer vestígio de dignidade humana. Ainda assim, aos olhos de boa parte do eleitorado, eles não parecem ser tão diferentes um do outro, e é o discurso de Marçal que voa encontrando engajamento por aí. Agora vocês me digam: onde está o erro?

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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