Milly Lacombe

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Linguagem neutra é gatilho que expõe as contradições da esquerda brasileira

O candidato à Prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos, escutou o hino nacional ser cantado com linguagem neutra durante um de seus comícios no final de agosto e não gostou. Aliás, detestou. Quem autorizou essa palhaçada? Não pode mudar o hino pra incluir essa linguagem não. Vou demitir. Aqui a coisa é séria.

Nas redes sociais, membros da esquerda começaram imediatamente com o discurso: Boulos deu munição, perdemos a eleição nesse dia, precisa focar na economia, esquece debate de gênero.

O "deu munição" quer dizer que a candidatura de Boulos ofereceu, de bandeja, uma bola para que os campos do centro, da direita e da extrema direita - um campo único na política brasileira - cortassem na cara do candidato que se autodeclara "de esquerda".

O campo oposto ao de Boulos de fato pegou a onda por sua candidatura criada e surfou. Para espanto de ninguém, os conservadores fizeram isso de forma menos barulhenta do que a própria esquerda. Quem precisa perder tempo berrando contra a linguagem neutra quando os representantes da esquerda já fazem isso tão bem?

Lá vamos nós outra vez.

Falta à esquerda colocar em circulação suas próprias pautas. Sem conseguir apresentar pautas que sempre pertenceram a seu campo, a esquerda conciliatória vive de reagir às pautas propostas pelo centro, pela direita e pela extrema direita - o tal do campo único.

A ridicularização da linguagem neutra passa a ser incorporada e validada por uma esquerda que se obriga a esquecer o que essa linguagem carrega como potência de vida. Uma esquerda que se autodigladia sobre linguagem neutra aceitando a pauta como ela foi inteligentemente oferecida à sociedade pela direita e sem propor um novo enquadramento para o debate é uma esquerda que está moribunda.

Trata-se de uma esquerda que optou por fingir que não sabe que a linguagem existe em movimento e que nomear é dar pertencimento. Fazer troça com qualquer coisa que escape do tradicional é a arma de destruição em massa do colonizador.

Nas palavras da psicóloga indígena Geni Nuñez: "Esse feitiço de mudar a língua colonial, que dizem ser tão ridículo e inofensivo, tão sem importância, curiosamente é o que lhes tira o sono, remexe suas verdades, compele à criação de leis que repitam: só a minha linguagem que é válida, só ela que importa".

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Linguagem é um produto das relações de dominação e por isso precisa ser transformada. Quando exatamente a esquerda decidiu pular fora desse barco e se curvar à direita nessa treta.

Em relação à turma que acha que usar linguagem neutra é dar munição ao campo oposto e que o certo é priorizar a economia, o argumento mais sensato seria dizer que dar munição ao campo oposto é ignorar pautas que sempre foram os pilares de uma agenda de esquerda: igualdade radical e soberania popular.

É curioso também que o campo da esquerda tenha aceitado de boa essa definição matemática de economia e tenha aberto mão do entendimento que economia é economia política e que essa ciência fala da forma como nos relacionamos com a produção, com o consumo, com a distribuição, com a política salarial, com o planeta e uns com os outros

Igualdade aqui não é apenas o contrário de desigualdade econômica. Igualdade aqui é construir uma sociedade que crie as mesmas oportunidades de raça, gênero, crença, sexualidade. Passa por dar os mesmos direitos a todos, todas e todes. Sim, todes, Brasil. Passa por falar em carga semanal de trabalho, por salário máximo, por taxar grandes fortunas, pela urgência de uma nova matriz energética, pelo direito das florestas, pelo fim das políticas de austeridade, por taxar lucros e dividendos etc etc etc.

Dar munição ao campo oposto é suprimir todas essas pautas. Dar munição ao campo oposto não é usar linguagem neutra. Aliás, se a gente for olhar bem de pertinho esse pânico moral contra a linguagem neutra carrega nele um tanto de transfobia.

Validar a linguagem neutra é validar diferentes formas de vida, é validar a violência do regime binário da diferença sexual, é validar ficções como ideologia de gênero. Bancar a linguagem neutra é validar valores que um dia foram tão básicos para o campo que se diz solidário e inclusivo. No fim do dia, cair na armadilha do pânico moral em relação à linguagem neutra legitima voluntariamente todas as pautas mais importantes (e absurdas) do campo da extrema direita.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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