Milly Lacombe

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Feminista não gosta de homem?

No último dia de agosto acordamos com a notícia da estupenda palestra que o treinador palmeirense Abel Ferreira deu durante evento do mercado financeiro. O multicampeão e ídolo foi aplaudido de pé pela audiência presente. Na sequência, avisou que iria doar o cachê para alguma instituição que doa livros, coisa desse tipo. Atitude digna, sem dúvida. O que sentir diante da notícia? Menos de dez dias antes, o mesmo homem agora celebrado estava sendo abertamente machista com uma jornalista que apenas fez seu trabalho de colocar para ele uma pergunta durante coletiva de imprensa.

Como, em menos de dez dias, saímos de um lugar para o outro? Da crítica ao machismo por ele executado para os aplausos eufóricos da audiência?

Acho importante falarmos sobre isso. Porque é educativo.

A primeira coisa: Abel Ferreira, assim como você e eu, é feito de muitas dimensões. Ele pode ser machista num dia e decente no outro. Abel Ferreira, assim como você e eu, é também feito de contradições e de multidões.

Isso estabelecido, sigamos com a reflexão.

Como, em uma semana, varremos o machismo e a misoginia da pauta e estamos apenas celebrando Abel sem lançar sobre ele um olhar crítico? Como a pauta da luta das mulheres por espaço e dignidade em ambientes de trabalho foi apagada em tão pouco tempo?

Comecemos pelo começo.

A pauta do machismo ficou no máximo dois dias sendo debatida pela opinião pública. Depois disso, em vez de nos aprofundarmos nela, pegamos um desvio para a história do que deixou de fazer Leila Pereira em relação ao machismo de seu funcionário.

Não falamos mais da dor da vítima, não tentamos saber como ela estava, pouco se debateu o fato de Aline Fanelli ter sido temporariamente afastada do trabalho por questões emocionais, não cobramos nominalmente os colegas de profissão presentes à coletiva, não falamos da importância de homens cobrarem outros homens, não teve textão de jornalista nenhum revendo sua trajetória e se implicando no machismo.

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Fomos de "Abel foi machista" para "Leila não é feminista" em 48 horas. Foco na mulher.

Aqui faço um parênteses.

Desde a Mesopotâmia - e falo literalmente - machucar mulheres por erros de homens é parte do jogo social. A lei por lá era: se um homem estuprar uma virgem o pai da virgem pode estuprar a mulher do criminoso. Estava escrito, pessoal. Então estamos lutando contra milhares de anos desse tipo de normalização. Um homem errou? Encontrem uma mulher para ser exposta, machuquem uma mulher, desviem o foco. É assim que o machismo se reproduz.

Voltemos.

Depois de uns dois dias debatendo o comportamento de Leila Pereira pelo machismo de seu funcionário a pauta mudou de novo. Passou a ser: como as mulheres estão tratando os aliados?

E aqui não estou apontando dedos. Estou falando estruturalmente. Foram muitos e muitos homens que se sentiram machucados com nossas colocações e precisamos ser capazes de debater de forma madura, sem pessoalizar, sem fulanizar. O desdobramento da pauta foi de "Leila não é feminista" para "A dor dos aliados".

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Focamos finalmente nos homens, mas não no comportamento deles e sim em sua dor. Estão feridos. Somos muito furiosas. Não gostamos de homens. Por que vocês não gostam da gente?

Numa sociedade em que maridos, namorados, ficantes e familiares matam três mulheres por dia e na qual uma mulher é estuprada a cada seis minutos, quem não gosta de quem?

Mulheres não gostam de acordar todos os dias sabendo que terão que enfrentar o machismo e a misoginia. Não gostam de ser abusadas, de ser assediadas, estupradas e assassinadas. Vejam, não é pessoal. Queremos apenas existir em paz.

Assim: quem não gosta de quem?

Quando, diante desse cenário, nos colocamos de forma mais contundente não é raro que apontem críticas ao nosso tom, a passar dos limites, à fúria descabida. Essa é uma reclamação que é sempre feita sobre o grupo oprimido. O sistema opressor não recebe esse tipo de análise.

A inversão da narrativa é uma das armas mais antigas do colonizador. Um exemplo rápido.

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Em São Paulo existe uma estátua de muitos metros de altura de um estuprador e genocida que se apresenta em pedra segurando um trabuco nas nossas caras. A estátua de Borba Gato nunca foi considerada uma obra que passou dos limites. Mas quando ativistas tacam fogo nesse monumento ao horror para chamar a atenção para tudo isso, bem, passaram dos limites. Toma a lei na cabeça deles. Celebrar monstros é ok; expor o monstro por sua monstruosidade não é ok.

Depois de nos tirarem tudo não é permitido sequer que estejamos furiosas.

Com a inversão da narrativa e com a história virando "os aliados estão machucados" uma outra perversidade se revela: hora de cuidar dos homens. Vamos dizer, um a um, que eles são legais. Vamos colocar no colo. Vamos nos desculpar pelo tom. Não era com você.

Pronto. Essa passou a ser a história. Não é a dor das mulheres vítimas de machismo. Não é a crueldade do machismo. Não é como acabar com o machismo. É; os aliados estão feridos. Precisamos protegê-los.

Fica claro como o jogo do machismo acaba sendo reproduzido e é capaz de colocar o homem na posição da vítima?

Temos que falar do papel do aliado? Sim, temos. Temos que falar de como cobrar mulheres pelos erros de homens é machismo? Sim, temos. Mas a história fundamental - o machismo naturalizado em uma coletiva de imprensa - morreu. Foi apagada.

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Mulheres jornalistas não estão seguras em seu ambiente de trabalho. Essa realidade se mantém. A repórter não está bem. Essa realidade se mantém. Nenhuma de nós está segura. Essa realidade se mantém. Vamos interromper a luta por nossas vidas e dignidades para colocar homens no colo, educá-los em tom adocicado, elogiá-los sempre que possível. Não podemos cobrar deles autoinvestigação porque não podemos correr o risco de deixá-los desconfortáveis.

A verdadeira luta só se dá em lugar de desconforto. Não há transformação no conforto. A primeira fronteira dessa luta é, aliás, o espelho. Essa é mais importante do que a midiática. Muito mais. A segunda fronteira é de um homem com outro homem. No cotidiano. No miudinho. Onde ninguém estes vendo. Essas são as duas principais trincheiras da luta antimachista.

Mas sobre o desconforto que as feministas são acusadas de causar a homens sempre que se mostram furiosas seria preciso dizer que desconforto é o dia a dia de uma mulher.

A gente existe dentro dele. É dentro dele que a gente levanta da cama, leva filho na escola, prepara o jantar, arruma a casa, lava a louça, vai para o trabalho, produz, cria, inspira, respira, busca filho na escola, fica horas no transporte público, faz reunião. É a partir desse lugar de absoluto desconforto que nos cobram produtividade, beleza, leveza, educação, doçura.

Um lugar que nunca, nem por um minuto, deixamos de frequentar: o do desconforto, o do incômodo, o do desencaixe.

Quem quiser nos ajudar nessa luta vai precisar saber seguir no desconforto. Há respiros, claro. A gente dança, faz festa, se celebra. A gente, mesmo dentro desse mundo violento, ama muitos homens. Algumas de nossas pessoas favoritas são homens. Algumas das pessoas que mais admiramos são homens. A pessoa que mais me constituiu foi meu pai. Um homem doce e decente que me educou com liberdade e senso de justiça de gênero e que eu viria a descobrir, depois de sua morte, sabia ser extremamente machista e misógino com minha mãe.

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Como a gente resolve isso dentro de nossos corações? Essa é uma outra história. Mas, para não deixar de responder a pergunta do título de forma direta: não. Nós não odiamos homens. O que odiamos é viver numa sociedade comandada por um tipo naturalizado de masculinidade que nos detesta e que prova isso, todos os dias, abusando de nossos corpos, mentes e vidas das mais variadas formas.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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