Milly Lacombe

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Marçal deixa escapar o aspecto mais amedrontador de sua ideologia

Pablo Marçal está longe de ser um alucinado; alucinado é o sistema que o produziu. E isso fica bastante evidente depois que assistimos à sabatina conduzida por Fabiola Cidral no UOL nesse 4 de setembro. Algumas coisas que ele disse me chamaram a atenção, e uma delas em especial me deixou absolutamente apavorada.

A que me causou repulsa foi dita entre vírgulas, quase sem querer, e abriu uma porta para o mais assombroso dos lugares.

Por partes.

O candidato à Prefeitura de São Paulo Pablo Marçal usou a palavra "energia" pelo menos cinco vezes durante a entrevista. Energia no sentido de garra, vontade, pulsão de vida e não energia no sentido da célebre equação E=mc². Não a energia distribuída pela Enel, mas aquela que faz você sair da cama pela manhã. A energia evangelizada vendida pelos coaches dos quais agora ele quer se separar.

"Seremos uma nação empreendedora a partir de São Paulo", disse Marçal logo no começo, prometendo levar a lógica do empreendedorismo para todas as favelas e periferias da capital paulista.

Quem nos campos do centro, da direita e da extrema direita discorda desses métodos?

Se até no campo da esquerda temos amantes do empreendedorismo como solução de todos os problemas da vida fica claro como chegamos a um ponto no qual os discursos mais alucinados não podem ser assim tratados porque, dentro de uma sociedade que gira em falso, eles fazem todo o sentido.

A lógica empreendedora é uma lógica de guerra, de competição, de vencer e fagocitar a concorrência a qualquer custo, de isolamento. Uma sociedade não se estrutura de forma saudável nessa chave. Nunca aconteceu e nunca vai acontecer. O tecido social é feito de solidariedade, cooperação e do alargamento do espaço comum. Mas se nem a esquerda banca esse debate então o que diz Marçal deve ser aplaudido por Tabata, Nunes e Datena sem ressalvas. Boulos talvez tenha considerações, mas será que seria capaz de verbalizá-las publicamente? Não acredito.

Compartilhando um tipo de discurso incorporado até pela esquerda empreendedora Pablo Marçal está varrendo favelas e periferias. Canta Racionais, fala a linguagem das quebradas, promete uma revolução, faz pactos com moradores, olha no olho deles e se deixa afetar. Está indo nos cantos onde o Estado só chegou com sua brutal ausência.

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Fala em uma vida alegre para todos. Fala em esporte. Fala em alimentação saudável. Fala em força de vontade. É meritocracia na veia. Faz parecer que viver saudavelmente é apenas uma questão de escolha. Pinta uma São Paulo com pessoas meditando ao ar livre e fazendo supino antes de irem trabalhar.

Mas também fala em como algumas vidas foram esquecidas pelo Estado e em como é preciso dar a elas a chance de estudar, empreender e suar para existir decentemente. O que ele diz chega longe e faz sentido para muitas pessoas que, de fato, foram esquecidas.

"Temos que moldar o caráter do povo", avisa antes de explicar que esporte molda caráter, que quem estuda arte marcial na escola não briga, que quem não se encontrar no esporte vai se encontrar no empreendedorismo.

Se diz um professor. Um mentor. Anuncia que faz trabalho de mentoria atualmente com "umas 12 milhões de pessoas". Diz que vai aplicar o que aprendeu para treinar professores para que ensinem educação socioemocional, educação financeira e empreendedorismo.

Não tem filosofia, não tem sociologia, não tem geografia. É educação para construir trabalhadores. Nesse ponto os discípulos de Jorge Paulo Lemann levantam e aplaudem por dez minutos sem parar.

Faz sentido? Numa sociedade que obriga todos a trabalhar e não é capaz de oferecer trabalho a todos faz muito sentido.

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O que Marçal (e Lemann) omite é que homens como ele só podem seguir acumulando fortunas dentro de uma sociedade precarizada na qual a miséria não seja jamais solucionada.

Cidral pergunta se a metodologia de ensino seria a dele e Marçal responde que a metodologia é apenas a "ordem natural das coisas".

Vamos fazer uma pausa aqui para celebrar esse trecho que é o mais neoliberal dos fatos.

É uma ordem natural. É assim que a economia funciona. Não adianta tentar lutar contra isso. Vamos apenas aplicar essa regra tão bem difundida por Thatcher-Reagan a todos começando já nas mais precoces idades. É o cada um por si. Levanta, faz tua cama, toma seu shake proteico, treina, fica forte, faz teu corre, vence em nome de Deus.

É um mosaico de alucinações e de coerências, esse que tão bem define o que a parte considerada bem sucedida da sociedade se tornou: praticantes de ioga que se alimentam de avocato-toast e pregam contra vacinas.

A revolução na educação da qual Marçal fala é bastante parecida com a cartilha difundida pelo método Lemann do privatiza geral e depois a gente vê. Em alguns temas, Marçal e Tabata têm mais em comum do que podem imaginar a despeito das tretas.

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Marçal falou de seu vício em pornografia e contou que ficou 20 anos preso nisso. Resvala num ponto importante e mostra como o debate de gênero é central nessa disputa - e em todas as demais.

Cidral pergunta sobre educação sexual nas escolas citando a quantidade de agressões pelas quais meninos e meninas passam e Marçal responde mostrando como o campo da extrema direita vem macetando o da esquerda quando o assunto é linguagem, vocabulário, léxico.

"Segurança sexual é o nome da matéria", ele explica. Marçal é a favor, não quer meninos e meninas sendo abusados e abusadas. Mas avisa sobre os perigos da erotização infantil, esse discurso tão abraçado por esquerda e direita como se algum sentido fizesse.

Vejam: dizer que educação sexual erotiza crianças faz sentido nessa política dentro da qual a esquerda desistiu de disputar conceitos. Educar sexualmente uma criança não é ensiná-la sobre erotismo. É ensinar sobre como se proteger se predadores, sobre respeitar seu corpo, sobre integridade emocional, sobre saúde. Como a esquerda decidiu que esse tema não era importante precisou aparecer Pablo Marçal para empacotar o tema da forma correta: chama segurança sexual, Brasil.

A coerência do candidato dura poucos segundos. E aí entramos na parte da entrevista que me atordoou e aterrorizou.

"Temos que instruir os pais", disse Marçal. Sim, verdade. Um bom ponto. É nesse momento, entre vírgulas, que ele avisa que já faz isso na escola em que seus filhos estudam, que é de sua propriedade.

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Na escola dele, os pais estão lendo um livro chamado "Educando Meninos", de James Dobson. Marçal errou o nome do livro na sabatina e disse que era "Criando Meninos". Não é. E antes fosse.

Aqui temos uma porta de entrada para os círculos do inferno pelos quais Marçal quer nos conduzir sem a companhia de Virgílio.

James Dobson é um lunático extremista defensor da família tradicional. Psicólogo, escreveu livros que encorajam o espancamento dos filhos com cintos ou outras ferramentas a fim de preservar a ordem e a disciplina social. É adepto de centros que promovam a conversão de pessoas gays em heterossexuais, fala em difundir aberrações como "encontros românticos entre pais e filhas" a fim de embutir nas mulheres uma ideia de masculinidade que não as deixe escapar de seus papeis de gênero que as obrigam a casar, ter filhos e servir à família. Tem muito mais sobre Dobson, mas vou parar por aqui porque escrever sobre isso causa calafrios.

Pablo Marçal quer uma São Paulo a sua imagem e semelhança. Ele não tem um projeto de governo, mas de sociedade. O perigo está na parte coerente de seu discurso - que só é coerente porque o capitalismo morreu mas precisamos fingir que nada está acontecendo - porque ela é a bebida adocicada que nos fará tomar o veneno sem sentir seu gosto amargo. Quando nos dermos conta do que aconteceu, tudo já estará perdido. Bendito seja o fruto e que Deus nos proteja.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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