O perigo de acreditar na palavra da vítima
Em casos de violência sexual, a palavra da vítima tem peso de prova. Por que essa distinção em relação a outros crimes? Porque, por motivos óbvios, crimes sexuais normalmente não contam com testemunhas ou outro tipo de materialidade. Acontecem nas sombras. Nos cantos. Debaixo das mesas, numa sala trancada, no banheiro vazio, nas nossas camas enquanto dormimos. Ninguém vê. Ninguém se dá conta. Tem vezes em que nem nós mesmas nos damos conta de imediato e precisamos de meses, anos, décadas para conseguir acessar o real caráter do que passamos.
Essa distinção deixa muitos homens incomodados porque confiar apenas na palavra da vítima coloca o gênero em situação delicada ao acabar com o suposto equilíbrio de versões: Ela confirma, ele nega: quem está dizendo a verdade? Diante do embate, o noticiário coloca o caso na chave da "polêmica".
Para sair desse dilema podemos recorrer ao histórico dos crimes sexuais.
Estatisticamente falando, os casos em que mulheres tenham mentido para tirar proveito da situação e acabar com a vida de um homem são desprezíveis. O que isso quer dizer? Que não haja falsas denúncias? Não. Temos sim casos de falsas denúncias. Pesquisadoras e autoras como Rebecca Solnit e Amia Srinivasan explicam que esses casos estão na ordem de 3% a 5%.
Seriam 5% de mulheres acusando injustamente homens de crimes sexuais para se dar bem na vida? Não.
A maior parte das falsas acusações vem da voz de outros homens que acusam algum homem de ter cometido crime sexual contra uma mulher. Há outras especificidades que envolvem a raça do falso acusador (branco) e a raça do falsamente acusado (negro), mas não vou entrar agora nesses detalhamentos. O importante é saber que uma mulher não faz falsas denúncias porque, ao fazer a denúncia, nossas vidas são destruídas.
Tem muita coisa em jogo quando uma mulher finalmente tem a coragem de dizer publicamente o nome de seu abusador. Especialmente se o abusador for alguém com poder.
As mulheres que decidem seguir com as denúncias fazem isso porque existe o entendimento de que só assim sairemos desse lugar em que o patriarcado nos colocou. Mas a maior parte não faz denúncia alguma. Para cada denúncia há, em média, nove não feitas. Eu nunca formalizei uma denúncia. Minhas amigas nunca formalizaram uma denúncia. E eu desconheço uma mulher que não tenha sido abusada.
E aí está o grande nó da questão.
Se todas nós conhecemos pelo menos uma mulher abusada, se todas nós temos nossos casos de abuso para contar então como não conhecemos nenhum abusador que não seja algum desses homens colocados na chave de "monstros" como Daniel Alves e Robinho?
A lógica mostra a cara da nossa sociedade: nossos abusadores estão por aí. São caras legais, simpáticos, que fazem sucesso e são admirados. Muitas vezes, admirados pela vítima. Muitas e muitas vezes. E temos que lidar com a complexidade dessa relação: nossos abusadores são homens incríveis que nós mesmas respeitamos intelectualmente e como amigos. Eles fazem uso dessa admiração para cruzar a fronteira e invadir nossos corpos sem consentimento. E agora? O que fazemos dessa perversão oferecida pelo machismo estruturado como uma das bases da sociedade?
O imenso medo de que a palavra da vítima seja levada a sério e valha como prova reside no fato de que os abusadores estão por aí sendo caras legais e - vejam - se manifestando contra o machismo. Nossos abusadores estão chamando Daniel Alves e Robinho de monstros, falam contra eles absolutamente indignados na mesa do bar enquanto colocam suas mãos sobre nossas coxas sem nosso consentimento.
No dia em que a palavra da vítima for finalmente assimilada como prova pela opinião pública então os homens estarão muito vulneráveis porque, a qualquer momento, poderemos falar. Falar do presente e - que perigo - do passado.
É por isso que existe tanta força contrária quando uma mulher relata ter sido vítima de um crime sexual. Querem materialidade. Jogam na vala dos crimes que não são sexuais, querem testemunhas, relatos, vídeos, fotos, sêmen, perícia. E mesmo quando o caso tem toda essa materialidade, como no crime contra Mariana Ferrer, o acusado consegue passar ileso e seguir sua vida tranquilamente. Não basta. Não basta nem mesmo a palavra de uma mulher contra a de um homem. Precisamos de dez mulheres. Vinte. Trinta. Não, melhor 100 mulheres para que a sociedade possa, enfim, condenar um homem conhecido.
Por tudo isso me interessam mais os homens que hoje estão revendo suas atitudes e se implicando na questão do que aqueles que, quando surge um novo caso de abuso sexual, correm para se separar do acusado de todas as formas possíveis criticando o machismo e a misoginia sem ter ideia do que o machismo e a misoginia fazem com nossos corpos na miudeza do dia a dia. Não queremos vingança ou punição retroativa. Não precisamos nem mesmo de confissões e de revelações. Trocamos tudo isso por homens que consigam rever seu passado, mudar de atitude e nos ajudar a construir um futuro decente.
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