Milly Lacombe

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Leila Pereira, Tabata Amaral e os abomináveis esconderijos do machismo

Tabata Amaral chocou São Paulo no debate do Flow News. Não, ela não atirou uma cadeira na cabeça do rival nem deu um murro no assessor de outro candidato. Tabata cometeu o ato pavoroso de falar um palavrão. Um não. Foi pior do que isso. Tabata falou dois palavrões. Não tem cabimento uma candidata que se comporta nesses termos deploráveis. Tabata errou demais. Não esperávamos isso dela, uma mulher tão recatada.

Seria curioso se não fosse, antes disso, muito triste que mulheres sejam sempre colocadas no lugar das santas por obrigação. Diante de um cenário eleitoral no qual os candidatos homens se esmurram, berram e falam impropérios aos rodos, vira notícia indignada a mulher que, revoltada, fala dois palavrões. Não podemos perder a linha. Perder a linha é privilégio masculino. Cabe à mulher evitar que o debate seja deselegante. Comporte-se.

O machismo e a misoginia rastejam por entre nossos pés feito um animal gosmento que muitos se recusam a ver que está ali, envenenando a todos e a todas.

Se machismo fosse um problema apenas dos homens talvez saíssemos desse estado deplorável de coisas mais rapidamente. Mas o machismo é o pilar sobre o qual o patriarcado se ergue imponente, e o cimento desse edifício está dentro da gente, de qualquer um de nós. Mesmo daqueles e daquelas que se propõe a combatê-lo.

Vejam Leila Pereira e a recente declaração que ela deu sobre as acusações que pesam contra Caio Paulista, atleta do Palmeiras. Caio Paulista foi acusado pela ex-mulher de violência doméstica. Caio Paulista, por decisão do empregador, não foi afastado e segue sendo escalado.

Logo depois que as acusações vieram a público o atleta foi titular em uma partida e para a surpresa de ninguém que esteja atento à gravidade da acusação, foi expulso em um jogo no qual seu time goleava com tremenda facilidade. Quem poderia imaginar que o jogador não tivesse condições emocionais de atuar, não é mesmo?

Leila Pereira, perguntada sobre a situação de seu empregado, bancou que ele não seja afastado e perguntou de volta: mas não passa pela cabeça de vocês que ele seja inocente?

É só o que passa pela cabeça de todos que ele seja inocente. Quem está sendo acusada pela opinião pública de mentir é a ex-mulher de Caio Paulista. Caio Paulista está protegido. Protegido pelo empregador e pela masculinidade vigente que culpa a vítima pelo abuso que ela venha a sofrer.

Leila Pereira foi a dirigente que, até aqui, mais fez pela inclusão de mulheres no futebol. Nada do que ela fez vai ser apagado. Devemos um tanto a sua coragem de falar sobre o machismo no futebol e de chamar uma coletiva apenas com mulheres. Leila Pereira é constantemente vítima de machismo e, mesmo no caso envolvendo Caio Paulista, ainda é. Para muitos, pior do que a acusação sobre o jogador é a "feminista" que cala diante da acusação. Não leram nada sobre o caso, não falam de Caio Paulista, não se horrorizam com o depoimento da suposta vítima porque estão focados em gastar tempo cobrando Leila para que ela fale. Quando param de cobrar Leila partem para cima das jornalistas mulheres para que elas expliquem por que mesmo não é certo cobrar Leila Pereira. Podem repetir, por favor? Não ficou muito claro. Nunca cobraram um dirigente homem pela prática do machismo e dos supostos crimes de gênero de seus atletas, mas não são capazes de perceber o machismo na fúria com que partem para cima de Leila.

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Acontece que o feminismo é uma linguagem que deve ser aprendida, não é um evento. Precisamos de tempo para que haja letramento e uma melhor compreensão. Diante de um impasse, Leila escolheu ser empresária e não feminista.

Caio Paulista pode ser inocente sim e, mesmo não sendo, pode ser inocentado. A mulher que o acusa pode estar mentindo. Sim, e sim. Improvável, mas nada impossível

Só que se a gente olhar para a sociedade na qual vivemos vai ver que os casos de falsas denúncias são desprezíveis. O machismo manda que foquemos no acusado. O feminismo, na pessoa que acusa. Se focarmos na acusação, a atitude digna seria a de afastar o atleta para que ele possa organizar sua defesa e se recolher. Não é culpá-lo de forma antecipada. É dizer para a sociedade: a acusação é grave, vamos preservar o atleta, vamos levar em conta o que diz a vítima e, até que tenhamos mais evidências, ele seguirá afastado.

Mas o Palmeiras está bancando a versão de seu empregado sem, ao que parece, ter se interessado em escutar a palavra da vítima e de seu advogado. Dizem que Caio Paulista tem provas robustas e eu me pergunto o que pode provar tão robustamente e de forma tão rápida que ele não cometeu o crime de que é acusado. Agindo desse modo, o Palmeiras está dizendo às mulheres que gostam de futebol: o que vocês falam não tem importância. Podem denunciar quanto quiserem: a palavra mais forte é a do homem

É triste dado que a violência de gênero é uma epidemia no Brasil. Em 2023 foram registrados mais de 250 mil casos, um índice imensamente subnotificado porque a vasta maioria das mulheres agredidas não faz a denúncia. Por quê? Porque fazer a denúncia é ter que ver o país inteiro dizer que ela é uma aproveitadora que quer se dar bem tirando dinheiro do acusado. Porque raramente um homem é condenado. Porque quando é apenas a palavra dela contra a dele a palavra dela é ignorada. Porque, de verdade, ninguém liga. Segue o jogo, nada pra ver aqui.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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