Milly Lacombe

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Uma esquerda que aceita moralizar o debate sobre drogas perdeu seu rumo

Pablo Marçal compartilhou laudo falsificado sobre Guilherme Boulos. A falsificação visava sugerir que o candidato do PSOL fez ou faz uso de drogas. Se a mentira fosse lida como verdade, Boulos perderia votos - era a ideia. No Brasil e no mundo, centro, direita e extrema direita debatem drogas na chave da moralidade. É coisa de gente fraca, preguiçosa, vagabunda.

Essa associação é bastante conveniente à legitimização da guerra às drogas. Se o uso de drogas é coisa de marginal e vagabundo, quando a polícia entra atirando nas favelas e periferias e mata dezenas ou centenas de suspeitos - sabe-se lá do que - ninguém se importa. Desumanizar o usuário e compará-lo ao traficante é uma conveniência que facilita o trabalho de genocídio orquestrado pelas instituições no Brasil.

Esse discurso permite que uma guerra que é lutada há décadas - sem nenhum índice de sucesso se a ideia é acabar com o tráfico - continue sendo executada. Me parece bastante evidente que se a intenção é interromper o comércio de drogas essa guerra fracassou faz muito tempo.

Quem está atento sabe que não existe guerra às drogas e que esse é apenas um modo para que o assassinato de corpos periféricos continue a ser praticado sem que o Estado precise responder por ele. Se houvesse interesse em acabar com o tráfico, o poder público iria atrás das reais lideranças, que estão bem longe das favelas.

Quando a esquerda aceita a narrativa de que droga é uma questão moral, ela está entregue ao fracasso, às normas e à linguagem da extrema direita.

Quem usa drogas no Brasil? As classes alta e média fazem uso constante de drogas lícitas e ilícitas sem que haja sobre elas nenhum tipo de julgamento moral. Rico viciado está doente. Pobre viciado é bandido.

Por que pessoas vulneráveis não podem consumir drogas como fazem os ricos desse país? Será que as drogas não são uma rota de escape para as durezas da vida? Quando tudo está perdido e não existe mais horizonte, o que pode aliviar o desespero?

Lembro de minha mãe dizer que não dava esmola porque "ele vai gastar em cachaça". Hoje sei que a única resposta possível para esse julgamento moral é: e daí? E daí se a pessoa em situação de rua quiser usar o dinheiro para beber e aliviar a dor? Ela teria que usar o dinheiro para quê? Comer? Comer uma refeição sabendo que não haverá a próxima?

"Experimenta nascer preto, pobre na comunidade/Cê vai ver como são diferentes as oportunidades/E nem venha me dizer que isso é vitimismo/Não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo." Salve, Bia Ferreira.

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O debate sobre o uso de drogas não pode ser um debate moral. Ele precisa ser um debate real. Livrar uma sociedade do abuso de drogas é entender por que estamos consumindo tantos entorpecentes de modos suicidas? Do que estamos tentando fugir? Por que o alcoolismo atinge os homens tão mais do que as mulheres? Como pensar em políticas públicas que deem conta de cuidar dos frequentadores das cracolândias?

Eu desconheço pessoas que não usem algum tipo de droga - lícita ou ilícita. Mas sei que só meus amigos ricos podem dizer que fazem uso de algum entorpecente. Do pobre espera-se retidão completa e absoluta, sem direito a cansar, sem direito ao ócio, sem direito a se entregar a qualquer tipo de euforia química mesmo que seja de forma controlada.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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