Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Dorival fala e, em ato falho, revela mais do que talvez quisesse

Quem ganha quando Dorival Jr. pega o microfone é sempre a conjugação verbal. O treinador usa com precisão a primeira pessoa do plural do presente do subjuntivo. É um viva atrás de outro quando Dorival manda um "para que assim ocupemos os espaços". O tempo verbal, talvez dissessem os lacanianos, não está ali ao acaso. O presente do subjuntivo indica desejo, hipótese. Fala de coisas incertas no presente, mas aponta o caminho do sonho.

Na coletiva da véspera do jogo contra a seleção peruana (a quinta série em mim me obriga a tentar escapar de usar "o Peru"), Dorival deixou escapar uma mágoa que eu interpreto como pouco madura. Ele disse que, no Brasil, a gente pisa naquilo que quer vender. O uso de palavras nesse caso não foi bom, mas o que ele queria dizer era: vocês falam mal de um produto que é essencial para o Brasil. O produto é a seleção.

Tudo nesse pensamento está equivocado, mas ele é bastante revelador. Dorival representa a CBF e o que ele disse, obviamente, tem respaldo da confederação. O futebol é, portanto, uma mercadoria a ser vendida. Corre aqui, vem ver uma coisa, Lacan.

É triste, mas é a realidade e se não nos acanharmos de seguir apontando existe uma chance de mudarmos. Não quero com isso sugerir que o caminho é o de recusarmos o modelo econômico como um todo - seria lindo e nos salvaria, mas não chego a ser ingênua a esse ponto. Quero sugerir que essa matriz de pensamento vai seguir nos afundando.

A seleção brasileira não é um produto a ser vendido. Ela é representante de uma identidade cultural. Ela forma subjetividades. Ela é o país em campo. Esse é o princípio. O paradoxo é que se a história começar assim, com a recusa desse discurso apequenado de ser um produto que precisa ser vendido, o final vai ser a inescapável venda do produto. Explico.

Quando a seleção voltar a nos representar culturalmente, ela vai voltar a encantar e, com isso, voltar a engajar. A partir daí, tudo passa a ser possível. Mas não estamos falando aqui da cultura institucional. Estamos falando das culturas das frestas. Da música, da capoeira, do Carnaval, do São João, das religiões de matriz africana, do corpo como um lugar possível para abrigar o divino.

Recusar a crítica e o desejo geral para que voltemos a jogar bola, como fez Dorival, é sinal de falta de maturidade. Não dele exatamente, mas da CBF.

Eu não sou uma dessas pessoas que acreditam que não temos mais craques. Temos muitos. "Ah, mas não se compara ao que já foi um dia". Não se compara porque a sociedade mudou, o jogo mudou, a formação de jogadores mudou. O futebol hoje, da forma como está organizado, é castrador de criatividade e de inovação em campo. Gansos e Matheus Pereiras são a resistência à formação geral das "volâncias", essa palavra medonha que já faz parte do léxico futebolês. Sistemas posicionais existem porque eles exaltam o treinador, tirando do corpo de atletas a capacidade de transgredir, de se rebelar, de driblar, de se deslocar para o improvável e surpreendente.

Contra a seleção peruana Dorival vai montar um time ofensivo, na tentativa de golear e calar críticos. Pode dar certo e, se der, ele precisa ser celebrado pela ousadia. Mas uma seleção não existe para calar ninguém. Ela existe para encantar. Ou deveria.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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