Candidata à prefeitura fala em implementar doação de bebês de mães pobres
"Eu vou criar um instituto pró-vida municipal para que a mulher que engravida sem querer e é abandonada pelo marido tenha um acolhimento discreto do município, atendimento psicológico, todo o acesso à questão legal pra que fique claro que ela pode ter aquele filho e inclusive doar, vai ter ajuda financeira, mas ela pode, inclusive, doar aquele filho pra centenas de milhares de casais que querem uma criança em adoção, esperam e não têm."
Isso foi dito pela candidata Cristina Graeml durante entrevista recente.
Vamos fazer uma pausa para que o pronunciamento seja absorvido. Se for preciso reler, por favor, releia.
Pausa feita, vamos dissecar o que ela disse.
Instituto pró-vida, ela fala. Qual vida? Vida do feto, não a vida da mãe.
Quando os defensores do suposto "direito à vida" sacam essa frase eles estão falando de uma vida que, de fato, ainda não existe. Ah, mas a vida começa na fecundação, você pode argumentar. E eu poderia contra-argumentar que começa no quarto mês, quando uma fadinha visita a barriga da mãe ou da pessoa que gesta e faz um pirlimpimpim sobre ela dizendo: faça-se vida.
Essa é uma discussão vazia que quer apenas sequestrar o debate.
Quem sabe quando a vida começa? Uns acham que é no céu, outros num reservatório de almas, outros no nascimento. Não teremos jamais certeza sobre quando a alma entra no corpo - nem mesmo se almas existem - e, portanto, a questão não importa para um debate que se pretende adulto e civilizatório. Crenças religiosas não podem se impor a outras formas de pensar e de existir.
Você acredita que a vida começa na fecundação? Maravilha. Acredita que no céu existe um reservatório de almas esperando sua vez na fila? Beleza. Tudo certo. Cada um com suas verdades. Apenas não podemos enfiar a verdade de um na goela do outro.
Então, se vamos falar em vida, falemos da vida existente: a da pessoa que carrega o feto.
Mas a candidata ignora por completo essa vida. A mulher e pessoa que gesta reduzidas a seus úteros.
Ela vai criar esse instituto "para que a mulher que engravida sem querer e é abandonada pelo marido tenha um acolhimento discreto do município". Alguns pontos.
O primeiro: Então vale o Estado gastar com o social?
O segundo: A mulher que engravida sem querer (Estupro? Deslize? Tanto faz para esse pensamento extremista) e é abandonada pelo marido teria que passar por esses dois traumas - o da gravidez indesejada e o do abandono - e ainda assim ser obrigada a gestar para doar.
Mas, vejam, ela vai ser ajudada pela prefeitura. Até parir, claro. Depois, rua. Vire-se. Não estamos nem aí para você agora que pariu.
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Quero receberA mulher não é uma mulher; é uma coisa, um órgão, um forno. Uma coisa sem sentimentos, sem apegos, sem afetos. A mulher pobre, naturalmente. Porque quem precisaria de ajuda para seguir com uma gravidez indesejada?
De "doar" para "negociar" é um passinho, e o pronunciamento da candidata toca nesse pequeno detalhe quando fala em "ajuda financeira" - e isso o neoliberalismo ama. Vamos vender órgãos e crianças. Quem dá mais?
A mulher não importa, não existe, não vale.
A candidata disse isso como se estivesse apresentando uma solução maravilhosa para a questão da gravidez indesejada. Não fala em políticas reprodutivas, em educação sexual, em prevenção, em leis duras contra o estupro, contra o abandono paterno, nada. Engravidou? Problema da mulher. Deixa o pai ir, gente. Esqueçam esse detalhe. Venham que a prefeitura auxilia vocês com esse probleminha. Até nascer. Daí a gente doa e você voa daqui.
Se as vidas fossem o foco poderíamos pensar em, quem sabe, auxiliar a mulher de baixa renda que teve o filho. Como? Com creche, acesso a saúde desde a gravidez, parto humanizado, transporte público gratuito para ir e voltar do médico, licença-maternidade estendida, bolsa-mãe etc etc etc.
Trata-se de um discurso carregado de elementos fascistas que foi naturalizado pela extrema direita e por uma boa parte da mídia que escuta absurdos e não argumenta que esse tipo de político está fora das linhas democráticas. Não pode concorrer, não pode ter espaço, não pode ter voto. Mas a candidata está aí sendo recebida como se estivesse deliberando verdades e soluções.
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