Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

A manobra retórica que impede enxergar o racismo no Bola de Ouro

Uma civilização que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu funcionamento suscita é uma civilização decadente. Uma civilização que prefere fazer vista grossa diante de seus problemas mais cruciais é uma civilização combalida.

Essas são as primeiras linhas do "Discurso sobre o colonialismo", do escritor martinicano Aimé Cesaire.

Em seguida ele diz que uma Europa que não consegue enxergar que o colonialismo é a questão original é uma Europa hipócrita. "A Europa é indefensável", ele conclui. Moral e espiritualmente indefensável.

Uma Europa que subiu em palanques para abolir a escravização em seus domínios enquanto incentivava, financiava e lucrava com a escravização além-mar. "De todas as expedições coloniais acumuladas, de todos os estatutos coloniais elaborados, de todas as circulares ministeriais expedidas, é impossível extrair um único valor humano sequer".

Diante do estampado racismo testemunhado no Bola de Ouro - que não apenas deixou Vinicius Jr de lado, como o excluiu de suas postagens em homenagem ao Real Madri, time de Vini, e ainda colocou um ex-jogador negro para entregar o troféu a Rodri - agora nas redes sociais alguns dizem que não se pode provar que é racismo e que Rodri merece o prêmio.

De fato, não vamos ter jornalistas votantes dizendo: sim, sou racista e votei de acordo com meu racismo. Quem achar que é assim que se prova o racismo ou é doente da cabeça ou é doente da alma.

E é também verdade que Rodri é um tremendo craque. Mas Rodri não é a questão aqui e colocá-lo no centro do debate é tentativa de diversionismo.

Mas, sim, contabilmente não podemos provar que foi racismo.

Não podemos provar que foi racismo, mas podemos olhar em volta e enxergar a Europa em que as coisas aconteceram.

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Não podemos provar que foi racismo mas podemos falar do estado putrefato dos guetos europeus onde vivem as pessoas racializadas.

Não podemos provar que foi racismo mas podemos estudar a exploração criminosa da Europa sobre países africanos que ela devasta, saqueia e depois atua para impedir que a população desesperada escape da miséria por ela criada.

Não podemos provar que foi racismo mas podemos ver quantos jornalistas negros trabalham com futebol na Europa.

Não podemos provar que foi racismo mas podemos ver quantos treinadores negros atuam nas principais ligas europeias.

Não podemos provar que foi racismo mas podemos ver quem são as pessoas nesse exato momento detidas em campos de concentração para imigrantes que tentam entrar na Europa.

Não podemos provar que foi racismo mas podemos levantar o que fazem as ligas europeias para eliminar cantos racistas de seus estádios.

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Não podemos provar que foi racismo mas podemos saber quantos jogadores africanos já ganharam o Bola de Ouro como melhor atleta.

Não podemos provar que foi racismo mas podemos estudar o que o colonialismo europeu fez com as sociedades no mundo inteiro.

Não podemos provar que foi racismo mas podemos citar as palavras do coronel Montagnac, um dos conquistadores da Argélia: Para afastar as ideias que por vezes me assolam, mando cortar cabeças, não cabeças de alcachofra, e sim cabeças humanas.

Não podemos provar que foi racismo mas podemos pesquisar como se comportam os franceses contra seus atletas negros quando a França perde.

Não podemos provar que foi racismo mas podemos contar quantos atletas europeus se solidarizaram com Vinicius Jr sempre que ele foi vítima de algum crime de ódio.

Não podemos provar que foi racismo mas podemos saber quantas vezes governos europeus se mostraram indignados com o racismo cru e direto em suas arquibancadas.

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Não podemos provar que foi racismo mas podemos dar uma espiada na divisão racial nas principais universidades europeias.

Eu poderia seguir indefinidamente, mas acho que a ideia foi passada. O racismo está provado para quem estiver disposto a enxergá-lo, basta olhar em volta. Tentar esvaziá-lo do que aconteceu no Bola de Ouro é fazer um pacto com ele. Se havia alguma dúvida eu acho que escolher um atleta africano para entregar o prêmio a um jogador branco deixa tudo cristalinamente evidente. O racismo se regozija nessas ações de perversão moral que visam dizer: quem manda aqui somos nós, comportem-se. Sistemas de opressão aceitam de bom grado os obedientes. Eles se enfurecem mesmo é com os dissidentes. Para terminar: Não é sobre Rodri e jogar o debate para esse palanque é duvidar da inteligência alheia.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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