'Ainda Estou Aqui' não é sobre a ditadura; é sobre a família
Fui ver "Ainda Estou Aqui" achando que eu ia chorar até desidratar, mas não foi exatamente o que aconteceu. Chorei, mas eu choro em qualquer filme, então minhas lágrimas não são medida. O que senti foi muito mais profundo do que tristeza. Foi uma mistura alucinada de emoções que variavam entre raiva, melancolia, revolta, tristeza, alegria, euforia.
A ditadura está lá, pulsante com todo o seu horror e perversão. Mas é no miudinho da vida familiar que o filme amassa a gente.
É num jantar corriqueiro, no suflê que queimou, na festa de despedida da filha que vai viajar, num mergulho no mar, no dente de leite da caçula, no cachorro adotado sob protestos do pai. É nessa pequenez que a obra leva a gente ao chão. É nesse comezinho que a vida é destruída sempre que uma ditadura prevalece, sempre que a polícia entra atirando na favela, sempre que o soldado decide disparar a esmo e matar quem estiver pelo caminho, sempre que um genocídio é colocado em prática.
O filme de Walter Salles revela a destruição desse miudinho em cenas dilacerantes. E a gente se identifica porque esse miudinho todos temos. Ou tivemos em algum momento. É o boa noite que a gente dá à mãe, é o macarrão de domingo, é a ida ao Maraca com o pai, é o jantar com o irmão, é a briga para ver quem dorme na cama maior, é uma dança fora de hora depois do jantar.
"Ainda Estou Aqui" fala das coisas que perdemos para a fúria dominadora do poder militar e empresarial. Não perdemos apenas vidas; perdemos memórias, afetos e um cotidiano que era nosso.
O filme acaba na tela, mas não acaba dentro da gente. É uma pancada bem dada. Um chamamento para não aceitarmos mais esse tipo de destruição. Um alerta para jamais tolerarmos qualquer pessoa que fale que a ditadura foi necessária. Por uma bizarra coincidência, esses são sempre os mesmos que falam em preservar a família, que é a primeira coisa devastada quando um sistema de poder opressor entra em cena.
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