Acabar com o papel de primeira-dama é missão feminista
Que exista um lugar político conhecido como primeira-dama é, em si, uma aberração do patriarcado. Não é cargo, não é função, não é oficial, não é rigorosamente nada a não ser a reafirmação de uma estrutura de poder misógina e machista.
As mulheres que ocupam esse lugar não têm nada a ganhar e têm muito a perder. O Brasil atura uma primeira-dama desde que ela seja como a doutora Ruth Cardoso: silenciosa, educada, escolarizada, pacata, engajada em trabalhos sociais. A doutora Ruth Cardoso, antropóloga e bastante superior ao marido em termos intelectuais, viveu sempre na sombra de FHC e nunca pareceu se importar. Aí sim. Aí pode.
Dona Marisa Letícia, mulher periférica, trabalhadora e sindicalista, foi vítima de todo tipo de preconceito explícito por parte da geral, inclusive da imprensa, a mesma que cortejou a doutora Ruth Cardoso. Tanto ódio foi jogado em sua direção que a morte precoce não chegou a ser uma surpresa. Enquanto dona Marisa morria, havia quem estivesse na porta do hospital festejando.
Michelle Bolsonaro, a despeito de todos os disparates ditos e executados durante o mandato do marido, não chegou a receber metade da ira dirigida à Dona Marisa. Passou bastante bem pelo ciclo, até porque, em muitos termos, preenchia o papel de bela, recatada e do lar que agrada à direita e também à esquerda. Mulheres, aquietem-se.
Janja, a atual primeira-dama, foge de tudo o que conhecíamos até aqui. Socióloga, jovem, falastrona, ousada. Janja não segue protocolos e esse texto não pretende determinar se ela acerta ou erra ao fazer o que faz. Limito-me a dizer que, como todos nós, ela erra e acerta. O que Janja disse para Elon Musk ("Fuck you") em evento de escala mundial seria digno de aplausos se viesse como prenuncio de uma grande ofensiva do atual governo contra o obsceno poder das Big Techs e contra o futuro governo fascista de Trump. Mas não é isso, obviamente. Foi apenas mais um impulso fanfarrão dito no calor do momento e totalmente desassociado de políticas de emancipação.
O que quero elaborar aqui é o aspecto machista dessa função que não é função mas virou função extraprotocolar que é ser a primeira-dama. Um desvio grotesco adotado - adivinhem onde - pelo sistema estadunidense no século 19 para encaixar a mulher do presidente no contexto político de alguma forma.
Uma feminista de verdade se recusaria ao papel. Simplesmente diria: não me sujeito a isso. Vou cuidar da minha vida. Vou usar meus conhecimentos para outras coisas. Não vou ficar aqui na barra da calça do cara virando página de discurso e indo pegar uma garrafa d'água para ele continuar falando. Fala, meu homem.
Aceitar o papel de primeira-dama é aceitar estar abertamente exposta a todo tipo de machismo. O machismo que vem de dentro - dos conselheiros do marido que não suportam a ideia de ter ao lado deles uma mulher que pensa e fala o que pensa - e o machismo que vem de fora - dos outros poderes e da imprensa. Janja não tem como vencer essa batalha. Como diz a amiga Alicia Klein, colega de coluna aqui nesse canal, o máximo que conseguirá é alcançar o binômio pequenas vitórias-grandes derrotas.
A feminista alinhada aos mais fundamentais valores do feminismo recusaria formalmente o papel de primeira-dama. Acabou. Não existe. Me nego.
Depois, trabalharia, por exemplo, para criar um espaço de memória para dona Marisa Letícia, vítima fatal do preconceito que pulsa tão forte nesse Brasil. Mas nunca escutei Janja falar o nome de Dona Marisa Letícia. É uma pena. Ao não enaltecer dona Marisa, Janja cai numa das maiores armadilhas do machismo, que é rivalizar mulheres. Em nome do feminismo que ela diz vestir, Janja deveria lutar para fixar dona Marisa Letícia como a grande mulher que ela foi e mostrar ao Brasil que não haveria Lula sem Marisa Letícia.
Esse mesmo feminismo poderia, fora do executivo, trabalhar para criar uma fundação que atuasse com a dignidade da mulher nas mais diferentes esferas. Com a cultura feminina. Com a memória feminina. Com a arte feminina. Com a ideia de deixar um legado para as brasileiras de todas as gerações.
Quanto ao marido de Janja, seria importante que ele parasse de tratá-la como uma criança que está ali para suportá-lo das melhores formas possíveis e, eventualmente, quando sai da linha, levar broncas públicas dadas via indiretas.
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