Onde está a solidariedade dos homens no caso dos estupros a Gisèle Pelicot?
No mundo inteiro, mulheres jovens e velhas se levantam pela senhora francesa, estuprada 51 vezes por seu marido e pelos amigos dele, que negou se esconder na lama da vergonha e da desonra.
Gisèle Pelicot, 72, exigiu que o julgamento do marido e dos outros estupradores fosse público e televisionado - e não quis ter seu nome mantido no anonimato. O que não quer dizer que todas as mulheres devam permitir que seus nomes sejam revelados em casos de violência de gênero. Muitas de nós não podemos, infelizmente. Mas Gisèle Pelicot rompeu com paradigmas em casos de estupro e libertou milhões de mulheres na França e fora da França ao mostrar seu rosto orgulhoso e apontar a vergonha para quem a merece. Há uma compreensão coletiva e mundial de que Pelicot mudou o constrangimento de lado em casos de violência sexual colocando a desonra onde ela deve estar: no abusador.
Estuprada durante um período de 10 anos pelo marido, que a sedava antes de colocar o estuprador dentro de sua casa enquanto filmava o estupro, Pelicot soube do que estava acontecendo por acaso, quando a polícia, investigando outro caso, achou imagens dela desacordada e sem roupa. Até aquele momento, Gisele estava visitando consultórios ginecológicos em busca de explicações para as dores que sentia e consultórios neurológicos que pudessem diagnosticar os apagões que estava experimentando. Jamais passou pela sua cabeça que o homem com quem estava casada há mais de três décadas, pai de seus filhos, fosse o responsável pelo que ela estava passando.
Dias depois de o caso ser revelado, a polícia chamou a filha do casal para mostrar a ela imagens de uma mulher semi-nua e desacordada. Queriam saber quem era. Era ela mesma. A filha tampouco se lembrava daquelas roupas íntimas, embora reconhecesse estar em sua cama. A história de Dominique Pelicot, estuprador, marido e pai, é de um horror absurdo, mas está longe de ser rara.
O estupro é uma cultura. No Brasil, acontece a cada seis minutos (números muito sub-notificados). Em 2023, 14 mil crianças de até 14 anos se tornaram mães. Nos últimos cinco anos, uma criança ou adolescente do sexo feminino morreu a cada semana por causa de complicações relacionadas a gestações já que o corpo de uma criança não foi feito para gestar ou parir. O estupro é uma cultura e, nesse contexto, o caso do estuprador Dominique Pelicot e de seus 50 colegas estupradores não pode ser tratado como raro, exceção ou monstruoso.
Os 50 outros estupradores da senhora Pelicot, agora condenados, alegaram que não sabiam que Gisele tinha sido dopada e que, assim, não estava consentindo com o ato. É bastante sintomático da cultura da masculinidade, uma que realmente não se importa com o que sente uma mulher durante um encontro sexual. Claro que é uma mentira, mas é também revelador: não há nenhum interesse no objeto feminino deitado ali. Está viva, morta, dopada, pouco importa. O que importa é atravessá-la com o pênis rígido para que outro homem veja o que estou fazendo e, juntos, tiremos prazer dessa violência e desse encontro sexual que está se dando, na verdade, entre dois ou mais homens (vamos lembrar do caso Robinho).
Nem todo homem
Se você é um homem heterossexual que está atento ao que sente a mulher com quem se encontra sexualmente resista à tentação de meter aqui um "nem todo homem". Se você não é esse homem, você é, então, um ser humano absolutamente normal. Não estamos trabalhando com medalhas para a normalidade. E se você não é esse homem intoxicado de masculinidade, saiba que o mundo lá fora é violento nesses termos para mulheres a despeito de suas qualidade particulares (que a gente chama de normalidade), e, assim, arregace as mangas e lute para que todos os homens sejam tão maravilhosamente normais quanto você.
Aqui vale dizer que não existe a expressão "sexo consentido". Todo encontro sexual pressupõe consentimento. Sem consentimento chama-se estupro.
Quantos estupros existem dentro de casamentos considerados saudáveis? Dentro de lares limpos, organizados e funcionais? Dentro do núcleo da família tradicional brasileira?
Transou com sua mulher enquanto ela estava bêbada ou dormindo? Estupro. Transou mesmo contra a vontade dela ainda que ela não tenha dito categoricamente um "não" ou tenha evitado empurrar você? Estupro. Fingiu não escutar ela dizer "hoje não"? Estupro. Tirou a camisinha durante a transa sem que ela percebesse? Estupro. Não houve consentimento? Estupro. Sempre estupro. Não importa se entre namorados, recém-casados ou casais que estejam juntos há 40 anos. Sem reciprocidade, chama-se estupro.
Quantos maridos considerados homens bons estão agora mesmo estuprando suas mulheres enquanto os filhos dormem? Quantos acordam para um dia normal em suas vidas depois de uma noite de estupro? Por que será que os homens "bons" do mundo inteiro não se levantaram por Gisèle Pelicot e contra os 51 estupradores? Na porta do tribunal na França, vimos apenas mulheres com seus cartazes de agradecimento e solidariedade. Em imagens de manifestações pelo mundo, apenas mulheres. Assinando textos em jornais e revistas, mulheres. Onde será que estão nossos aliados no caso dos estupros contra a senhora Gisèle Pelicot? Se pelo menos estiverem ocupados tentando encarar seus espelhos e rever atitudes talvez o futuro seja um lugar melhor para as mulheres.
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