Milly Lacombe

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Como Hollywood se articula para difamar mulheres que denunciam assédio

O filme "É assim que acaba" foi uma das maiores bilheterias de 2024. A história, baseada na obra de mesmo nome de Colin Hoover, fala sobre violência de gênero e tem como protagonistas Blake Lively (Gossip Girl) e Justin Baldoni (Jane the Virgin).

Baldoni, além de atuar, é também o diretor do filme. Conhecido por ser um aliado da luta feminista, era um dos mais atuantes defensores da igualdade de direitos entre homens e mulheres e uma vez disse: vamos apenas calar a boca e escutar o que elas dizem. Recentemente foi celebrado com o prêmio "vozes da solidariedade", que honra homens que lutam contra o machismo.

Pois.

Durante as filmagens do longa, Lively pediu uma reunião com os produtores para revelar incômodos com alguns dos métodos da equipe de produtores e da direção.

Segundo ela, cenas de sexo e beijos foram incluídas depois do roteiro aprovado e de forma improvisada por Baldoni. Numa cena em que sua personagem está parindo - portanto, em que ela está deitada, nua e com a pernas abertas -, havia homens que não tinham sido autorizados a estar no set, entre eles o vice-presidente do estúdio.

O ator escolhido para o papel de obstetra - aquele que estava de frente para as pernas abertas de Lively, - foi, sem que ela soubesse com antecedência, o melhor amigo de Baldoni. O produtor Jamey Heath abordava Lively para mostrar a ela nudes de sua mulher e Baldoni contava a Lively detalhes de seus relacionamentos sexuais com outras mulheres.

É assim que o assédio vai, dia a dia, matando a confiança e a auto-estima de uma profissional no ambiente de trabalho. Não é necessariamente um acontecimento grandioso, um estupro no banheiro, um agarrão no corredor. É na miúda, no cantinho, nas frestas. É um comentário sobre o peso da mulher, sobre a roupa, sobre a aparência. Mesmo que seja um comentário supostamente elogioso. É no papo que finge existir entre os colegas alguma intimidade a ponto de um homem contar a uma mulher com quem trabalha sobre sua vida sexual.

Depois de um tempo, Lively resolveu dar um basta e pediu uma reunião com os executivos do estúdio. Tudo exposto, ficou estabelecido que seriam colocados no set de filmagens alguns fiscais, que nenhuma cena extra seria acrescentada, que o produtor não mostraria mais nudes a ela, que ninguém entraria em seu camarim enquanto ela estivesse se trocando (Baldoni e Heath faziam isso constantemente) e que cenas íntimas não seriam improvisadas. Apenas o óbvio do óbvio do óbvio. Mas que precisou ser exigido.

Havia ainda uma outra cláusula no acordo: nem Baldoni, nem Heath nem os demais produtores fariam uso de táticas de represália contra Lively.

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Por que incluir essa cláusula? Porque nós sabemos que quando nos manifestamos contra o machismo dentro de uma corporação, mesmo que a imediata reação seja favorável a quem denuncia, as táticas de represália acontecem depois que as luzes se apagam.

Apesar de ter se antecipado ao rebote do patriarcado, Lively não foi capaz de evitá-lo.

Uma intensa campanha de difamação foi supostamente conduzida por uma equipe de relações públicas (RP) especializada em gerenciamento de crise contratada por Baldoni. Melissa Nathan, profissional de RP que trabalhou para Johnny Depp e para o "estuprador Drake" (nas palavras publicadas pelo New York Times), passou a trabalhar para Baldoni.

Mensagens que estão vindo a público agora revelam o planejamento por trás da campanha de difamação contra Lively a fim de mostrar que a atriz seria uma diva, que era difícil trabalhar com ela, que Lively tratava mal os funcionários etc, etc,etc. "Ele quer que ela seja enterrada", era uma das mensagens para Melissa Nathan falando do desejo de Baldoni. A resposta: "podemos enterrar qualquer um".

A investigação realizada pelo escritório de advocacia que representa Blake Lively mostra como, desde a contratação do time de relações públicas por Baldoni, a narrativa sobre Lively foi mudando na mídia.

Matérias e mais matérias falando sobre Blake Lively ser difícil, explosiva e praticar bulling no set, com quase nada do contraditório nelas. As mensagens que vieram a público sobre as táticas usadas pelo time de gerenciamento de crise de Baldoni falavam que seria necessário confundir a opinião pública mais do que convencê-la, já que as denuncias contra Baldoni eram bastante sólidas.

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Uma tática eficiente em qualquer nível político, a mesma usada pelos agentes que pregam o negacionismo sobre clima. "Ele não sabe como é sortudo", escreveu Melissa Nathan para o time de Baldoni quando a narrativa plantada na imprensa contra Lively começou a vingar.

Se Lively tivesse se recolhido sem lutar - como muitas de nós fazemos porque a força contrária é realmente avassaladora - esse teria sido mais um caso que ficaria suspenso. Ela disse, ele disse, nada para ver aqui, circulando. Ela teria saído da treta com fama de diva insuportável e ele, mesmo com alguns arranhões, seguiria sendo celebrado pela indústria e pela broderagem.

Agora estão sendo divulgados os detalhes de como funcionam as táticas de difamação contra mulheres que se levantam para expor casos de assédio dentro de empresas e corporações. Estamos vendo, por dentro, como o sistema se reorganiza para contra-atacar, re-inserir machistas e difamar quem ousou expor suas vísceras.

Woody Allen, Roman Polanski, Johnny Depp… podemos seguir listando episódios em que o acusado, a despeito das evidências, conseguiu sair da situação construindo a imagem de louca, perturbada, descontrolada, alucinada, tresloucada, deslocada e furiosa contra quem o acusou e, depois de tudo, ainda acabou aclamado pela indústria e pelos colegas.

O jogo está virando? Ainda é cedo para dizer, ainda que tenhamos bons indícios de que há empresas mais atentas e menos vingativas contra quem denuncia assédio sexual. Mas fiquemos com essa para terminar de forma otimista: O prêmio "vozes da solidariedade", esse que é dado a homens que demonstram coragem na luta pelos direitos de mulheres e que premiou Justin Baldoni recentemente, anunciou que retirou a honraria a ele concedida.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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