Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Anatomia de uma humilhação histórica

Quem estiver procurando apenas um motivo para a humilhação que o Brasil passou na noite de 25 de março de 2025 está no caminho errado. Para achar os motivos do deboche argentino para cima da gente, visto pelo mundo inteiro, seria preciso voltar no tempo.

Não há um culpado. O que há é um planejamento meticulosamente arquitetado para darmos aqui: uma engenharia da tragédia.

O futebol brasileiro está na mão de burocratas. É apenas um negócio que, como outro qualquer, visa o lucro e nada mais. E, sob esse aspecto, tudo vai muito bem. A CBF é empresa extremamente lucrativa. É uma das belezas do capitalismo. Não importa o que você produza, não importa o que você destrua para produzir o que quer produzir. Apenas maximize eficiência e acumule riqueza. Pronto.

Em campo, só tristeza e arrogância. Quanto pior jogamos mais arrogantes e violentos nos tornamos.

O constrangimento sofrido contra a Argentina vai custar caro a alguns: Dorival, Raphinha, Vini. Esses vão pagar em seus clubes, com sua moral, com isolamento e demissões. Assim como a distribuição de lucros numa empresa, a distribuição de culpa não vai ser democrática.

A juvenil entrevista feita por Romário com Raphinha dias antes do jogo, na qual ambos desfilaram suas masculinidades, certamente colaborou para o deboche argentino em campo, mas teríamos perdido com ou sem esse (já infame) diálogo. Raphinha teria saído do jogo menos desmoralizado e miúdo, verdade, mas o Brasil levaria uma sova tática de qualquer forma.

Enquanto a CBF não enxergar o futebol como usina que faz circular afetos e forma identidades, nada vai ser transformado. Enquanto o objetivo for lucrar nenhuma luta social será incorporada e a empresa CBF seguirá sendo comandada por executivos. Enquanto o sonho for o de distribuir riqueza entre poucos não seremos um time e não representaremos, em campo, uma nação.

Quando o hino nacional argentino foi cantado à capela antes do jogo e o estádio entrou em transe eu mandei uma mensagem para minha amiga Alicia Klein e disse: acabou aqui. Perdemos.

O que uma seleção é em campo se reflete na arquibancada. Vejam a nossa arquibancada hoje. Calada, nervosa, exigente, rica, branca, conservadora. Um tal de movimento verde e amarelo tenta doutrinar os corpos no estádio de maneira oficial. Regras para torcer. É tudo absolutamente deprimente e grotesco.

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No campo, um jeito colonizado de existir. Covarde, careta, burocrático, medroso e violento. Muito violento.

Não tem solução fácil ou rápida. É mudar conceitos. Comecemos aposentando essa camisa amarela sequestrada pelo fascismo. Depois, criar uma filosofia de jogo. Com ela em mãos, pensar em um treinador capaz de executá-la. Mudar a maneira como formamos na base. Incentivar esquemas táticos que reflitam a nossa cultura, que contenham, num campo, quem somos fora dele enquanto população.

A Argentina fez isso. Em campo, são uma cultura. A do tango. Intensa, dramática, guerreira. Exatamente como canta o hino entoado ontem com paixão por 100 mil pessoas:

"Coroados de Glória Vivamos / Ou Juremos com glória morrer / Ou Juremos com glória morrer / Ou Juremos com glória morrer". Na noite do dia 25 de março de 2025, coroados de glória, eles nos mataram.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.