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Sobrevivente do voo da Chape: "Descobri que não sou escalado por piedade"

Alan Ruschel, capitão da Chapecoense - Marcio Cunha/Chapecoense
Alan Ruschel, capitão da Chapecoense Imagem: Marcio Cunha/Chapecoense

14/02/2020 04h00

Pouco mais de três anos depois do acidente aéreo que matou 71 pessoas, incluindo grande parte do seu elenco profissional, a Chapecoense está de novo em reconstrução. Rebaixada no Campeonato Brasileiro e em delicada situação financeira, a equipe de Santa Catarina confiou a dois velhos ídolos, sobreviventes daquela tragédia, o seu novo processo de reconstrução. Enquanto o recém-aposentado Neto é o novo superintendente de futebol do clube, o lateral-esquerdo Alan Ruschel voltou ao elenco para ser o capitão do time.

Com cicatrizes "no corpo e na alma", o jogador de 30 anos passou o segundo semestre do ano passado no Goiás, onde reencontrou a confiança de que segue no futebol por talento, não por piedade. Agora, ele sente que é sua função ajudar mais uma vez a Chapecoense a se reconstruir.

Na primeira vez que esse recomeço foi necessário, após a tragédia com o voo da LaMia, a Chapecoense foi premiada no Laureus, o Oscar do esporte mundial, como "Momento Esportivo do Ano". Agora, ao comemorar 20 anos, o Laureus recuperou as histórias inspiradoras dessas últimas duas décadas e abriu nova votação online para eleger o momento esportivo desse período. A Chape está entre as cinco finalistas (você pode votar até a manhã de domingo, clicando aqui).

Olhar Olímpico - Como você vê essa indicação ao Laureus? Que tipo de sentimento essas lembranças te dão?

Alan Ruschel - Acho que nunca é bom ser lembrado por uma tragédia. Mas essa indicação mostra o esforço que o clube fez. Foi o trabalho de muita gente, de uma cidade inteira, de um país inteiro mobilizado para uma reconstrução. O grupo da Chapecoense, Chapecó, está todo mundo de parabéns por ter um representante no Oscar do esporte. A gente fica feliz em fazer parte desse processo todo.

Depois de três anos, as marcas da tragédia seguem no seu corpo, porque você vai carregar os oito parafusos na coluna. Mas elas começam a aparecer menos na sua mente?

Eu falo que essa cicatriz no corpo ela não desaparece, mas ela cura. Chega um ponto que não dói mais, o que dói é a cicatriz da alma. Essa não cura nunca. O que mais dói é a lembrança do que a gente tem. Vir aqui todos os dias, treinar aqui todos os dias... Claro que eu preciso disso aqui para sobreviver, minha família depende disso, eu dependo do futebol. O resquício que fica é essa dor da alma.

Você passou o segundo semestre do ano passado no Goiás, mas decidiu voltar. Por que?

Por tudo que aconteceu, eu tenho uma história que jamais vai ser apagada. Neto não conseguiu voltar a jogar como antes, o Follmann também não consegue, perdeu uma perna. Deus me deu essa oportunidade de representar as pessoas que acabaram indo, o Neto e o Folmann. Isso que me fez voltar para Chapecó para continuar uma história bonita.

Quando você saiu, você falou que queria mostrar, em outro clube, que ainda poderia jogar em alto nível. Valeu a pena?

Eu saí com um planejamento de realmente não provar nada para ninguém, porque eu não preciso provar nada para ninguém, mas mostrar que tinha voltado a jogar em alto nível, alto rendimento. Saí para respirar novos ares, jogar em outras equipes e mostrar meu futebol. Acabei jogando, fazendo gol, então minha passagem por lá foi muito boa.

Você também falou que não queria achar que estava no futebol por piedade. Hoje você sabe que joga pelo seu talento?

Hoje sim. A minha saída para o Goiás me fez bem, me fez ser um outro atleta. Acho que eu precisava disso. O pessoal não me enxerga mais como sobrevivente, não me trata com piedade.

E como é voltar com o time na segunda divisão?

Achei que era melhor minha permanência para ajudar o clube a se reconstruir. Dos titulares do ano passado, acho que só o João continua. Mudou muita peça, o clube ia passar por mais uma reconstrução e eu queria passar por isso. Ficar foi uma escolha minha. Um dos motivos de ter saído foi pelas coisas que estavam acontecendo aqui extracampo, mas hoje essas coisas me parecem ser bem diferentes, bem mais organizadas. Quis fazer parte dessa reconstrução mais uma vez.

E como está sendo essa reconstrução?

A gente tá empenhado em fazer com que o clube volte a crescer, volte a ter de novo uma força no país. Mas o povo de Chapecó, a torcida, precisa ter um pouco de paciência. Não tem dinheiro, então as coisas não vão acontecer rápido como da outra vez. A gente precisa ter paciência porque vai ser demorada a reconstrução. O principal objetivo do clube hoje é botar a casa em ordem. Se botar em ordem e subir, melhor.

Em algum momento você imaginou que, três anos depois de ter que reconstruir a Chapecoense, você teria que passar por esse processo todo de novo?

A gente nunca espera que vá ter que reconstruir uma equipe duas vezes. No futebol é muito difícil você chegar lá em cima, mas o mais difícil é se manter no topo. A gente nunca espera que o clube vá cair, quebrar de alguma forma, mas já que aconteceu a gente tem que ter discernimento, entender por que isso, e começar de novo.

Qual a pior parte de ter que começar um trabalho do zero de novo?

A pior parte é o resultado. Quando o resultado não aparece todo mundo é questionado. Eu peço um pouquinho mais de paciência para a cidade, para o torcedor, até mesmo para a imprensa, um pouco mais de paciência porque a gente tá numa fase de reconstrução. Claro que a gente não esperava essa sequência, mas acredito que o trabalho tá sendo bem feito, tem tudo para melhorar.

O Ministério Público recentemente pediu uma indenização de R$ 300 milhões à Chapecoense pelo acidente. Como você tem visto essa questão?

Esse negócio de valores eu to procurando não conversar muito. Converso mais com meus advogados, pessoal que tá por dentro. Não procuro conversar muito disso aí.