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Olhar Olímpico

Lutadora foge da Sérvia, voa com diplomatas e volta ao Brasil sem 2 dentes

Valéria Kumizaki no aeroporto, voltando ao Brasil - Arquivo pessoal
Valéria Kumizaki no aeroporto, voltando ao Brasil Imagem: Arquivo pessoal

03/04/2020 04h00

Valéria Kumizake acordou, olhou pela janela do seu apart-hotel em Arandjelovac, viu as ruas desertas cobertas por uma forte nevasca e chorou. Com os olhos marejados, voltou os olhos ao celular e leu que os Jogos Olímpicos de Tóquio haviam sido adiados, adiando também seu sonho de ser uma atleta olímpica. Enquanto isso, a carateca estava literalmente presa no interior da Sérvia, país que tinha todas as fronteiras terrestres fechadas. Havia dias não via nenhum rosto conhecido, porque passara a última semana isolada em um hospital, com uma grave infecção dentária, que lhe custou dois dentes.

"Eu tenho que sair daqui o mais rápido possível", pensou. Fez ligações, mandou mensagens de Whatsapp, entrou em grupos de Facebook, e menos de 48 horas depois estava em um voo de Londres para São Paulo. Nesse meio-tempo, escapou da Sérvia num avião de resgate enviado pelo governo britânico aos seus diplomatas. Como isso aconteceu? Nem ela sabe direito. Importante é que agora está na edícula da casa da mãe, em quarentena, mas com uma boa história para contar.

Treinos na Sérvia

Essa história começou uns sete anos atrás, num dia em que Valéria, que sempre teve dentes sensíveis, quebrou um deles comendo um doce. A coroa implantada naquela época decidiu infeccionar quando não podia, na véspera da última competição classificatória para a Olimpíada, a primeira (e aparentemente última) com disputas de caratê. O bom para a brasileira, que precisava muito dos pontos em jogo no Marrocos, é que o torneio foi cancelado. O ruim é que o cancelamento não foi por nenhum bom motivo.

Brasileira mais bem-sucedida na história do caratê, Valéria não mediria esforços na reta final do seu primeiro ciclo olímpico. Desde 2 de janeiro, passou por seis países até chegar pela segunda vez à Sérvia, onde faria os últimos treinamentos antes da derradeira etapa válida para o ranking olímpico, no Marrocos. Escolheu a cidadezinha de Arandjelovac porque é lá é a base da campeã mundial Jovana Petrovic, com quem Valéria gosta de treinar. O Comitê Olímpico do Brasil (COB) topou o projeto e bancou um camping.

Os planos começaram a mudar quando o Marrocos teve seu primeiro caso de Covid-19 e, no mesmo dia, proibiu qualquer torneio lá. Talvez sem acesso ao noticiário, a Federação Internacional de Karatê (WKF) decidiu que o torneio de Madrid, em meados de abril, valeria para o ranking. Naquele momento, a Espanha já tinha mais de 100 mortes. Só quando os mortos passaram de 300 é que o torneio foi cancelado e a WKF deu o ranking olímpico por encerrado.

Valéria Kumizaki, à esquerda, em treino na Sérvia - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

No hospital

Naquele momento, Valeria estava internada em um hospital que ele sequer sabia dizer onde ficava — só sabia o nome da cidade porque ele aparecia ao lado da indicação de temperatura do termômetro do celular. Dias antes, já com passagem para o Brasil comprada para o dia 20, dali a uma semana, ela começou a ter dores de dente. De sábado (14) para domingo (14) o rosto inchou e na clínica onde foi atendida recebeu a recomendação de procurar com urgência um hospital melhor equipado. Levada até Kragujevac pela técnica sérvia, foi internada às pressas — daí a internação.

O problema era grave. A coroa mal feita sete anos atrás infeccionou e formou um pus que talvez precisasse ser retirado por uma arriscada cirurgia, que, no final, não foi necessária. O pus desceu pela garganta, mas foi necessário arrancar dois dentes. "Deu alteração no meu sangue. É até um alerta, porque a gente sempre faz check-up do corpo, mas não dá valor ao dente. Faz clareamento, põe porcelana, mas esquece que o importante é o dente. Independente do coronavírus, eu teria perdido um torneio importante, último do ciclo olímpico, porque estava internada".

Para a família não ficar preocupada, Valéria minimizou a situação. Disse que precisava tomar antibiótico e que por isso ficaria uns dias no hospital. Não contou que ali também estavam internadas pessoas infectadas pelo coranavírus, o que a impedia de receber visitas. Foi o médico quem lhe contou, na sexta-feira (20), que o governo sérvio havia fechado de uma hora para outra todas as fronteiras terrestres do país. Ela receberia alta médica na segunda (23), mas estava presa na Sérvia.

Logística internacional

Experiente em viajar o mundo para treinar e competir, Valéria começou a pensar possibilidades. Chegaria na Bulgária ou na Hungria de carro em quatro horas, se conseguisse atravessar a fronteira, e havia aviões saindo para Turquia, Holanda, Inglaterra e Dubai. Pelo Facebook encontrou um telefone de contato da embaixada brasileira em Sarajevo. "Só que dessa vez eu não tinha comprado chip local. Sempre compro, mas dessa vez não comprei. E não tinha nenhuma enfermeira que falasse inglês. Fiquei fazendo mímica e uma enfermeira me emprestou o celular dela", lembra.

De ligação em ligação, Valéria descobriu que a embaixada de Belgrado até poderia ajudá-la a atravessar a fronteira com a Bulgária, mas ninguém do lado de lá asseguraria sua entrada e estada no novo país. Recém-saída de uma internação, qualquer viagem longa não era recomendada, nem tentar a sorte no aeroporto. "As pessoas falavam que era mais seguro ficar na Sérvia. Eu estava em um hotel, tinha alimentação, era seguro. Mas eu queria sair o mais rápido possível. Ou eu saía naquele momento, ou eu ia ficar dois, três meses, presa no hotel."

Valéria Kumizaki - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Enquanto brasileiros do mundo todo procuram o Itamaraty na tentativa de voltar para casa, em toda a Sérvia (e também em Montenegro) ela era a única com essa demanda. Outro fator contava a seu favor. Como atleta militar, terceiro sargento do Exército, Valéria entrou em contato com as Forças Armadas e recebeu não só incentivo para tentar deixar a Sérvia, como entrou em uma lista da Força Maior do Exército para ser resgatada. Receberia apoio dos adidos militares da Turquia e da Inglaterra, mas precisava antes conseguir chegar até lá.

Mas foi o embaixador Eduardo Botelho Barbosa quem, em contato com o chanceler Ernesto Araújo, segundo relato de Valéria, encontrou uma solução. "Ele disse que poderia ter um voo, que eu deveria ir para Belgrado na quarta de manhã. Cheguei lá e estava bem tenso, saindo dois voos de resgate. Era um voo privado em que estavam resgatando diplomatas ingleses. Cada um sentado em uma fileira, todo mundo recebeu um saquinho com um lanche e uma cartinha falando do coronavírus, dos cuidados".

Viagem de volta

Valéria voou para Londres sem a certeza de que poderia entrar no país. Conseguiu uma carta do Comitê Olímpico do Brasil (COB), que já vinha dando todo o suporte a ela, e tinha a promessa de ser assistida pelo adido militar brasileiro, mas precisava primeiro conseguir passar pela emigração. "Mostrei o documento do COB, mas o fiscal queria que eu comprovasse que eu era atleta e pediu para ver um vídeo meu lutando. Aí abrir meu Instagram e mostrei os vídeos que tem lá, e ele deixou entrar", conta.

Já em Londres, a tensão seguinte foi para que o voo da Latam para São Paulo não fosse cancelado, como havia acontecido com diversos outros voos, de diversas companhias, naquele dia e nos dias anteriores. "Cheguei 13h e fiquei até 20h30 esperando, naquela tensão de voar ou não. Eu tinha a promessa de que ia ter todo o suporte se eu tivesse que ficar, mas eu queria voltar para casa. Graça a Deus o voo foi confirmado, também com as pessoas bem distantes. Na minha fileira tinha quatro bancos, e só eu em uma ponta e um cara em outra".

Mas a viagem ainda não tinha acabado. Valéria chegou a São Paulo, mas o aeroporto da cidade dela, Presidente Prudente, está fechado. Com a ajuda do COB, a lutadora conseguiu um voo para Londrina, onde um motorista particular foi buscá-la para levá-la até sua terra natal. E ainda foi gentil de levar uma máscara feita pela esposa.

Quarentena

Ainda sem saber se está classificada à Olimpíada — ela ainda tem chances pelo Pré-Olímpico Mundial e por critérios confusos demais até para os atletas —, Valéria já voltou à rotina de treinamentos em Prudente, no quintal de casa. Em quarentena, ela está vivendo em uma edícula preparada para recebê-la por duas semanas, pelo menos.

Religiosa, ela agradece a Deus por ter conseguido voltar. "A probabilidade de isso dar errado era gigantesca. A gente que viaja bastante acontece tanta coisa, tantos imprevistos, e Deus me deu calma. Se apavorasse ali, no hospital, na situação que eu estava, eu ia pirar. Uma coisa é ter uma viagem marcada, ser adiada, e você sabe que outra hora você volta. Outra é você não saber se vai voltar em algum momento", desabafa.

Ser atleta e militar também acabou sendo determinante. "Se eu não fosse atleta e militar eu estaria lá até agora. Certeza absoluta. É o que acontece com a maioria do pessoal que quer regressar e não tem contato direto com as embaixadas e tudo mais".