Opinião: Nory foi racista, mas cancelá-lo não devolverá emprego de Ângelo
Arthur Nory foi racista em 2015. Trata-se de um fato público, reconhecido por ele mesmo. Alvo daquela fala racista, Ângelo Assumpção foi demitido do seu emprego no Pinheiros, em decisão que ele também considera ter sido racista. Nory frequenta o Pinheiros, também como empregado. Mas isso não faz de Nory o responsável pela demissão de Ângelo.
A cultura do cancelamento voltou suas armas a Nory desde que o Esporte Espetacular mostrou, há 10 dias, denúncias de racismo e de maus-tratos dentro da ginástica do Pinheiros. E se acentuou depois que, ontem à noite, a Folha publicou uma entrevista em que Nory pede desculpas. O timing da entrevista deixa a falsa impressão que o campeão mundial só quis limpar sua barra.
Nory e Ângelo passaram mais tempo de vida dentro do ginásio do Pinheiros do que de qualquer escola. Ambos foram criados dentro dessa estrutura que, pelo que apontou uma auditoria interna, é racista. São, ambos, filhos e vítimas dessa cultura não só racista. Também gordofóbica e homofóbica.
Triste, porém natural que ambos vissem como "brincadeira" as ofensas racistas filmadas em 2015 em um camping da seleção. Vale lembrar: um dos agressores, Nory, e a vítima, Ângelo, eram amigos muito próximos. Felipe Arakawa, do Minas, e Henrique Flores, de São Caetano, enteado do técnico negro da seleção Marcos Goto, também agrediram Ângelo, mas isso parece ter caído no esquecimento.
Só quando O Globo noticiou a existência do vídeo é que a "brincadeira" passou a ser vista como uma agressão. Os três agressores gravaram um vídeo de desculpas, protocolar, foram suspensos preventivamente, mas nem foram denunciados ao STJD da ginástica. O caso foi jogado para debaixo do tapete pela instância responsável na esfera desportiva, a CBG. Ângelo também optou por não levar o assunto para a Justiça Comum, se contrapondo à vontade da família.
Nory seguiu a vida e aquilo virou apenas uma mancha na sua trajetória vitoriosa, ainda que ele continuasse a lidar com a memória da agressão praticada. Ângelo, seu colega de treinos e antes um bom amigo, nunca o desculpou.
O caso voltou a tona quando o grande público ficou sabendo que em novembro do ano passado Ângelo foi demitido do Pinheiros. E que ele sofreu outros episódios de racismo no ginásio, praticados por outras pessoas. A vingança das redes sociais foi canalizada sobre Nory.
O medalhista olímpico, que depende de aprovação de Pinheiros, Caixa, Aeronáutica e CBG para dar entrevistas, há algum tempo queria falar sobre o episódio de racismo e fazer um pedido de desculpas público. Não tinha autorização. Teve agora, quando estava de novo da mira. Acabou cancelado em dobro, por mais que a entrevista seja sincera.
Só Ângelo pode desculpar ou não o ex-amigo de infância. Mas a sociedade só perde ao "cancelar" Nory. Se for pela demissão de Ângelo, o alvo está errado. Se houve racismo, como alega o ginasta negro, foi por parte do clube, comissão técnica e da diretoria. Empregador e patrões de Nory.
Qual a penitência que alguém precisa pagar por um erro (agressão, ofensa, qual seja a palavra) do passado? Aplicar a si mesmo uma suspensão voluntária? Açoitar-se em público? Ou nada adianta e, para sempre Nory será julgado por uma ofensa a um amigo quando tinha 21 anos? Porque se a regra é essa, receito que haja muito mais teto de vidro do pedra.
O racismo contra Ângelo é estrutural. Como a homofobia que impede que atletas se assumam gays. Como a gordofobia que afeta tantas ginastas. A solução também é estrutural e se resolve com educação, conscientização e punição a quem de direito. Nory tinha que ter sido punido em 2015. Não foi. Agora é tarde, inclusive do ponto de vista jurídico. Agora ele só pode pedir desculpas e tentar ser um cidadão melhor.
E se Ângelo não tem um clube, o responsável por isso não é Nory. São os clubes. É eles que têm que ser cobrados por quem se revolta pelas portas fechadas a Ângelo na ginástica brasileira.
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