Médico comanda hospital de campanha enquanto joga o Carioca de Basquete
O ideal antes de um jogo valendo classificação em um torneio importante, oficial, é que o atleta esteja bem descansado, bem treinado, bem alimentado. Mas Rubens Martinelli entrou em quadra para enfrentar o Niterói pela terceira rodada do Campeonato Carioca de Basquete, na quarta-feira à noite, acumulando 72 horas sem dormir. Fez o pior jogo da vida. Mas, no dia seguinte, nem deu tempo para lamentar. Ele tinha um compromisso muito mais importante: comandar um hospital de campanha durante uma pandemia.
Aos 39 anos, o médico ortopedista, que deu treinamento para os profissionais da linha de frente do combate à Covid-19, se divide entre os plantões no hospital de campanha do Riocentro e a quadra do Maracanãzinho, onde quatro times servem de sparring do Flamengo no Campeonato Carioca.
Martinelli é o camisa 88 do Clube Desportivo Atitude, um time que justifica seu nome. Se o Flamengo é o melhor time ao sul dos Estados Unidos, o Atitude é uma equipe amadora, que mescla jogadores que estavam há muito tempo aposentados e garotos que buscam a primeira oportunidade. O médico se encaixa no primeiro grupo.
"Meu ingresso no Atitude foi mais a questão da idealização do projeto. Eu estou há 14 anos aposentado. Eu joguei pelo Botafogo, joguei na NCAA, mas há 14 anos que eu não era federado. O Betinho (o treinador Roberto Almeida) tinha carência de pivô, disse que precisava muito, e como eu gosto muito dele eu tentei abrir um espaço na agenda para abraçar as duas coisas", conta Martinelli.
Quando garoto, ele jogou ao mesmo tempo em quatro categorias do Botafogo, do infantil ao adulto. Foi companheiro de Marcelinho Machado no Botafogo e de Nenê na seleção carioca. Convidado a jogar por uma universidade norte-americana, defendeu os Vikings da Western Washington University na NCAA. Formado em comércio exterior, voltou ao Brasil e decidiu realizar o sonho de cursar medicina. No primeiro ano da faculdade, e último da carreira, ajudou o Fluminense a vencer o Telemar de Oscar Schmidt.
No primeiro desafio após 14 anos de aposentadoria, o médico teve logo que encarar o gigante Rafael Hettsheimer, estreante do Flamengo. Nenhuma novidade para o pivô de 2,04m e 115kg. "Foi bastante prazeroso estar com pessoas que você admira. São verdadeiros ídolos. Foi uma honra, na verdade, mas ao mesmo tempo um desafio enorme", diz.
Nada que se compare ao combate de uma pandemia. Apesar da especialização em ortopedia, Martinelli nunca deixou de dar plantões como clínico. Quando o surto da Covid-19 chegou ao Brasil, ele não teve dúvidas em se listar para ajudar nos esforços. "Me cadastrei para ser rotina da clinica médica e desde a inauguração do hospital de campanha do Riocentro eu estou aqui. Meu cargo oficial é na rotina, mas hoje (ontem) eu estou eu estou na chefia do dia do hospital, por necessidade", conta.
Desde então, ele se dedica quase integralmente a salvar vidas. "É uma dedicação praticamente exclusiva. Abri até um pouco mão da minha especialização para para estar sempre atualizado, seguindo o que aparece de novo nos protocolos. Você tem que estar sempre revisando com os plantonistas do hospital, para não deixar furo", explica o médico, que chegou a trabalhar nos três hospitais de campanha, incluindo do Maracanã, vizinho ao ginásio onde ele hoje o Carioca.
No auge da pandemia, relata, passou por situações dificílimas." Quem estava nessa época na linha de frente em março, maio, sabe o que viu. Foi desesperador você escolher quem vai para o tubo, quem não vai. Teve uma situação que três pacientes entraram em insuficiência respiratória ao mesmo tempo e tive que dar um jeito de entubar os três. Passei o plantão com eles vivos, mas não sei o que aconteceu com eles. Acredito que estejam bem hoje".
Arriscado?
O Campeonato Carioca está sendo disputado em tiro curtíssimo, mas não em uma bolha. São cinco rodadas na fase de classificação, disputadas de segunda (29) até hoje (2). As semifinais ocorrem amanhã e, as finais, no domingo. Graças ao patrocínio de uma clínica, todos os jogadores, comissão técnica, árbitros e até imprensa foram testados antes de o campeonato começar. Mas, depois de jogar, todos voltam para suas casas.
Martinelli volta para um hospital de campanha. Ele só não faz literalmente o trajeto hospital-Maracanãzinho porque sempre para em casa para deixar a roupa suja para lavar e tomar um banho extra. A presença dele na competição gerou algum incômodo, mas o médico diz que é mais perigoso ele pegar Covid jogando do que no hospital.
"Eu estou muito seguro por causa dos protocolos de segurança que a gente segue aqui (no hospital). Tem que usar o pijama, o capote, gorro, luva, máscara, sapatilha. O risco de me contaminar de Covid é menor que no jogo de basquete, onde estou sem máscara. Tem até instituição envolvida que teve vários casos de Covid em outras modalidades", lembra ele, numa clara referência ao Flamengo.
Pergunto se, como médico na linha de frente do combate à pandemia, ele acha que as competições esportivas deveriam ter voltado como voltaram. "É complicado", ele responde, antes de fazer uma pausa para procurar palavras. "Eu acho que com testagem fica uma prática segura para comissão e atletas, sim. Porém, meu questionamento é justamente na testagem. Essa testagem tinha que ser feita de forma periódica em todo mundo", opina. Sobre volta de público aos estádios de futebol, como quer o Flamengo, ele não tem dúvida: é contra.
Após três jogos, o Atitude é o lanterna do Carioca. Perdeu do Flamengo (114 x 37), do Tijuca (91 x 53) e do Niterói (77 x 42). O último jogo é hoje, às 18h, contra o Club Municipal, que também não ganhou nenhuma — mas perdeu de perdeu de placares mais apertados para os mesmos rivais. Quem vencer pega o Flamengo na semifinal, amanhã. Os jogos do Fla passam no canal do clube. Os demais, na FBERJTV
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