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Olhar Olímpico

Indígena treina na praça e cuida do filho enquanto sonha com Olimpíada

Mirelle Leite, indígena que sonha com a Olimpíada - Wagner do Carmo/CBAt
Mirelle Leite, indígena que sonha com a Olimpíada Imagem: Wagner do Carmo/CBAt

14/11/2020 04h00

O Brasil tem uma população de cerca de 800 mil indígenas, que acordo com o Censo Demográfico mais recente, o de 2010. Mesmo assim, nunca um indígena representou o país nos Jogos Olímpicos. Entre os candidatos a quebrar este tabu aparece Mirelle Leite, uma pernambucana de 18 anos que já é campeã brasileira sub-20 no atletismo mesmo estando a mais de quatro horas de viagem da pista mais próxima.

Mirelle é descendente da tribo dos Xucurus (ou Xukurus), que vivem na serra do Ororubá, no município de Pesqueira, no Agreste de Pernambuco. Mas ela viveu ali por pouco tempo. Quando tinha três anos, os pais foram expulsos do local, em meio ao que ela aprendeu ter sido uma "guerra" — na prática, um conflito fundiário. Impedida de viver em sua terra, fugiu para a cidade, levada pelos pais.

Ali, cresceu como a segunda mais velha de nove irmãos. Logo, responsável por cuidar dos mais novos. "Quando eu tinha 11 anos, meu pai foi assassinado. Meu tio era envolvido com algumas coisas, era procurado. Queriam matar meu tio e acabaram matando meu pai também, sem querer. Ele não tinha nada a ver, mas foi morto", diz Mirelle.

A mãe fazia, e faz, faxina para sustentar os filhos. E a jovem, então com 12 anos, passou a procurar alternativas para ajudar nas contas de casa. Aos 12, viu meninas ganhando dinheiro participando de corridas de rua e quis treinar também. Convidada pelo técnico José Hildo Santos, que já treinava outras duas jovens na praça da cidade, se juntou a elas. Logo, passou a participar de competições regionais em Pernambuco, mas os planos precisaram ser interrompidos.

Aos 15, Mirelle ficou grávida. "Decidi ter meu filho e falei para mim que eu depois eu voltaria a correr", conta ela, que já ganhava algum dinheiro em corridas de rua. Voltou a treinar e competir, encaixando a rotina de atleta, estudante, faxineira, mãe e adolescente. "Eu acordo 4h30 para ir treinar, deixo meu filho na casa da avó dele, treino, pego ele de volta, passo a tarde em casa, deixou com a avó de novo, e vou treinar. Duas vezes por semana, trabalho em casa de família ajudando minha mãe. Aí eu treino de manhãzinha e, depois de trabalhar, coloco a roupa ligeiro pra treinar de novo antes de buscar meu filho", conta a corredora, que terminou o Ensino Médio no ano passado e hoje é apoiada pela Uninassau.

Os treinos, porém, acontecem em estrutura que passa longe de ser adequada. Mirelle treina na pracinha da cidade, no chão de paralelepípedo. Especialista na prova de 3.000m com obstáculos, ela treina barreira pulando sobre as mesas da praça. O cálculo de distância é feito a partir da informação de que a praça tem 200 metros. Em outro ponto da cidade há um condomínio cuja volta completa nele dá 800 metros. "A gente dá três voltas e meia nele para dar 3 mil metros".

Só para participar do Campeonato Brasileiro Sub-20, no fim de semana passado, Mirelle calçou sapatilha pela primeira vez para correr — em Pesqueira, ela treina de tênis, com solado alto. Mesmo com todas essas adversidades, a jovem indígena é uma das joias do atletismo brasileiro. No ano passado, venceu o campeonato nacional sub-18 nos 2.000m com obstáculos e foi prata no sub-20, já na distância olímpica. Em Bragança Paulista (SP), há uma semana, colocando meio minuto sobe a segunda colocada. Nos 3.000m rasos (versão júnior dos 5.000m), ficou com a prata.