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Há dez anos sem reajuste, Bolsa Atleta já paga menos que salário mínimo
Principal programa de fomento ao esporte no Brasil, o Bolsa Atleta completou, em setembro, dez anos sem reajustar o valor pago a mais de 6 mil atletas todos os meses. Durante este período, a inflação acumulada pelo IGP-M chegou a 122% e o salário mínimo foi aumentado em 115%. Os produtos ficaram mais caros, mas o valor nominal recebido pelos principais atletas do país continua o mesmo e sem previsão de aumentar.
Desde que o programa foi criado, em 2005, o Bolsa Atleta recebeu um único reajuste, em setembro de 2010, ainda durante o governo Lula (PT). De lá para cá o país teve três presidentes — Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (sem partido) — e sete ministros responsáveis, sendo que um oitavo, João Roma (Republicanos), assume o Ministério da Cidadania oficialmente hoje (24).
Há mais de uma década o programa tem cinco faixas de benefício, e os atletas se encaixam nelas a partir dos resultados apresentados no ano anterior. Os que ficaram entre os três primeiros colocados de competições internacionais (Mundiais, Pan-Americanos ou Sul-Americanos) entram na categoria "Internacional" e recebem R$ 1.850 por mês.
Os que subiram ao pódio em competições nacionais ou ficaram entre os três primeiros colocados do ranking nacional se enquadram na categoria "Nacional", que paga R$ 925. Em número menor também são beneficiados atletas de base e estudantis (R$ 370) e, no outro extremo, que disputaram a última edição dos Jogos Olímpicos ou Paraolímpicos (R$ 3.100).
A ampla maioria dos beneficiados, quase 5 mil entre os 7,5 mil inscritos no último edital, se enquadra na categoria "Nacional" — atletas que estão entre os melhores do país em suas modalidades, da base ao adulto, mas não chegam a se destacar no cenário internacional. Esportistas nessa categoria recebem os mesmos R$ 925 de dez anos atrás.
Quando aconteceu o reajuste, R$ 925 era quase o dobro (81% a mais) do salário mínimo, que em 2010 estava em R$ 510. Hoje, já 16% menor do que mínimo, que está em R$ 1.100. Para os atletas mais jovens, a bolsa de R$ 370 já não paga nem meia cesta básica na cidade São Paulo, a que mais tem beneficiados pelo programa. A Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, realizada mensalmente pelo Dieese, mostrava que a cesta básica custava R$ 241 em setembro de 2010. Em janeiro passado, ela chegou R$ 654.
Atletas sentem no bolso
A ideia central do Bolsa Atleta é permitir oferecer um suporte, do ponto de vista financeiro, para que um atleta possa se dedicar exclusivamente ao esporte em um país em que uma minoria dos esportistas de modalidades ditas amadoras recebe patrocínio. Mas, sem reajuste, um valor que antes permitia a um atleta já adulto pagar pelo menos suas contas básicas e a um jovem se responsabilizar por sua própria alimentação, hoje não faz nem uma coisa nem outra.
"Isso vale também para nossa economia em relação ao mundo. Muitos esportes de alto rendimento dependem de viagem internacional e nossa moeda vale muito menos. Então antigamente para você fazer uma viagem internacional custava menos reais", lembrou a esgrimista olímpica Maju Herklotz, em participação em live do coletivo Esporte Pela Democracia, ontem (23)
"Acaba que esvazia a abrangência e a potência do programa. Acho que para mim isso é um sinal de que isso não é prioridade. Eles estão acomodados porque é um programa bem-sucedido, que ao longo desses 15 anos manteve uma imagem positiva. Outros programas foram mais atacados, então isso deixa o programa numa situação de conforto. Ele cumpre o papel no papel, mas na prática não atinge necessariamente o resultado", afirmou Maju.
Vice-campeã mundial de wrestling, Aline Silva lembra que um atleta precisa de recursos para investir na sua profissão. "Se eu não tivesse que ter uma alimentação diferenciada, que pagar minhas viagens, minhas competições, talvez a gente conseguisse viver como boa parte da população brasileira vive com R$ 3 mil ou menos. Mas nossa profissão depende de boa alimentação, descanso, material, para você conseguir receber esses R$ 3 mil. Se eu não tenho, eu não chego, e minha profissão acaba não existindo. Então a gente está falando de um paradoxo gigante, de algo que uma coisa não encaixa com a outra. Esporte custa caro e quanto mais eu cresço mais investimento eu preciso. Se eu consigo ser campeã brasileira comendo arroz e feijão, para ser campeã pan-americana eu vou precisar comer mais legume, mais carne, que está caro... Sem esse investimento não dá para brigar em nível mundial."
Falta dinheiro
O Bolsa Atleta vem sofrendo, desde o fim da Olimpíada do Rio e do ciclo de investimentos maciços do governo brasileiro em esporte, com problemas de orçamento. Incluindo o Bolsa Pódio, destinado a atletas com chances de medalha na Olimpíada e na Paraolimpíada, o Bolsa Atleta como um todo custa cerca de R$ 140 milhões ao ano para o governo — o valor é quase estável porque o custo das bolsas não é reajustado.
Isso representava cerca de 10% do orçamento do Ministério do Esporte com projetos em 2016. A partir de 2017 o orçamento do Esporte sofreu cortes profundos, a ponto de, nos últimos minutos de sua gestão em 2018, Temer ter publicado uma lista de contemplados pelo Bolsa Atleta sem 3 mil nomes, porque o dinheiro não daria para todo mundo.
Sob Bolsonaro, a Secretaria do Esporte chegou a propor usar o dinheiro economizado com o fim do patrocínio da Petrobras à Fórmula 1 e da Caixa Econômica Federal aos clubes de futebol para ampliar o Bolsa Atleta, mas a ideia foi vetada pelas estatais. Ainda assim, o esporte conseguiu recursos para incluir, já em 2019, os atletas prejudicados em 2018, e depois comprometeu o orçamento de 2020 para pagar o edital de 2019.
A pandemia acabou ajudando a acertar as contas. O governo usou a suspensão das competições como argumento para não soltar edital em 2020 e, com isso, deixou de repassar R$ 140 milhões para os atletas. Dinheiro que não estava previsto no orçamento.
Um edital foi lançado em janeiro deste ano e a Secretaria diz ter recebido 7.427 inscrições. O Orçamento da União para 2021 ainda não foi discutido pelo Congresso, mas o Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2021 enviada pelo Executivo prevê R$ 145,2 milhões para o Bolsa Atleta, o que é suficiente para pagar todos os benefícios. O problema é que não há de onde tirar dinheiro para sequer discutir um reajuste, uma vez que, sozinho, o Bolsa Atleta já é responsável por metade dos R$ 292 milhões previstos para o Esporte em 2021.
Em 2019, depois de resolver o 'pepino' deixado por Temer, o governo Bolsonaro enviou para o Congresso um Projeto de Lei para reformular o Bolsa Atleta. O anexo que trata das remunerações aponta que os atletas que foram à última edição dos Jogos Olímpicos, por exemplo, receberiam "até" R$ 3.500 (hoje o valor é R$ 3.100), sem especificar qual seria o piso, nem como seria definido quem tem direito a esse teto. Atualmente os valores são fixos.
Além disso, pelo projeto, cerca 1,6 mil jovens de até 20 anos passariam a receber menos do que atualmente. Para eles, o corte seria de no mínimo 25%. Outra novidade seria a criação de um limite de vezes em que um atleta pode receber a bolsa. Esse limite seria estabelecido pelo secretário de Esporte. Pelo Projeto de Lei 2.394/2019, os atletas que forem ao pódio em competições nacionais nas faixas etárias "intermediária" e "iniciante", que atualmente recebem a bolsa categoria "nacional" (de atuais R$ 925 ao mês), passariam a ser classificados na categoria "atleta de base", para ganhar até R$ 700.
Parlamentares, porém, afirmam que nunca houve esforço por parte do governo para que esse projeto tramitasse na Câmara, onde o PL não deu nenhum passo desde que foi apresentado, há quase dois anos. Nas comissões para os quais foi distribuído, sequer relatores foram designados. Mesmo em material publicitário ou distribuído à imprensa, o governo nunca mais falou sobre tal projeto.
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