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Exclusivo: Emails mostram detalhes de desvio de dinheiro de confederação
"A nota é de R$ 18 mil. Os impostos montam 18%, retidos na fonte. Líquido, [sobra] R$ 14.760. Ele [o empresário] fica com R$ 500. Ele paga R$ 200 para o contador. Sobra R$ 14 mil. Antes era descontado R$ 900 (5%) de ISS, que agora não é mais. Sobravam R$ 13,6 mil, que dividido por dois dava R$ 6.500".
O email, detalhando como dois dirigentes do wrestling (antiga luta olímpica) dividiam dinheiro de um contrato de consultoria da Confederação Brasileira de Wrestling (CBW), pago com recursos de um patrocínio de R$ 11,2 milhões da Caixa, faz parte de um relatório sigiloso da Polícia Federal, obtido com exclusividade pelo Olhar Olímpico. Algumas dessas mensagens estão reproduzidas, como esta que vem abaixo, ao longo dessa reportagem.
São dezenas de trocas de mensagens que expõem Pedro Gama Filho, então presidente da CBW, e Roberto Leitão Filho, na época superintendente da confederação, dividindo as receitas de contratos de mais de R$ 30 mil ao mês. Gama também administrava a conta de um funcionário fantasma da confederação, segundo a PF. Os acusados são filhos dos dois grandes mestres do wrestling brasileiro, de quem herdaram os nomes: mestre Pedro Gama e mestre Leitão.
As esposas dos cartolas, Tatiana Fedeli Gama Filho e Ana Carla de Freitas Leitão, eram responsáveis por recolher os pagamentos, segundo o relatório. Os quatro são réus de um processo penal que corre na 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro desde novembro do ano passado, após denúncia feita pelo Ministério Público do Rio de Janeiro a partir desse relatório. Ao lado dos empresários Lino Mazza (primo de Leitão) e Oswaldo Zanelli (cunhado de Leitão), o grupo responde por peculato, lavagem de dinheiro e associação criminosa.
Os crimes teriam ocorrido entre 2013 e 2016, quando a Caixa foi patrocinadora da confederação —o acordo fazia parte do Plano Brasil Medalhas, que levou empresas estatais a patrocinar entidades com o objetivo de melhorar a preparação de atletas para a Rio-2016. O wrestling não atingiu a meta de ganhar sua primeira medalha olímpica. Existe a expectativa que, nos próximos meses, ao menos mais três inquéritos contra os dois dirigentes sejam apresentados à Justiça.
Pedro Gama Filho, o Doca, deixou a confederação no fim de 2020, após três mandatos. Em uma das conversas interceptadas, em 2013, combinando a divisão de recursos, alegou que precisava do dinheiro porque aqueles seriam os "últimos quatro anos" e ele não tinha um "plano B". Hoje, ele é presidente de marketing da UWW, a federação internacional de wrestling, e consultor de esportes de combate da Confederação Brasileira do Desporto Escolar (CBDE), além de ter um emprego na iniciativa privada.
Roberto Leitão, o Beto Leitão, primeiro atleta brasileiro a disputar os Jogos Olímpicos no wrrestling, em Seul-1988, disputou também os Jogos de 1992. Depois, foi técnico olímpico em 2004 e 2008. Ele a esposa, que também trabalhava na CBW, foram demitidos no ano passado, por justa causa — juntos eles recebiam quase R$ 35 mil ao mês. Os dois contestam a demissão na Justiça Trabalhista e pedem cerca de R$ 3 milhões em ressarcimento. Ele também trabalha para a CBDE atualmente.
Polícia Federal investiga
Após as primeiras diligências de um inquérito aberto em 2020, a Polícia Federal pediu à Justiça a quebra de sigilos telefônicos, fiscais e telemáticos. O relatório obtido pelo Olhar Olímpico fala do que foi encontrado nas caixas postais dos emails do "presidente", de "Leitão" e do "financeiro", entre março de 2013 e julho de 2016.
Nesses emails, aparecem diversas referências a cobranças sobre os valores pagos a Lino Mazza e Oswaldo Zanelli. Mazza é primo de Leitão e dono da Stampa consultoria, que recebia R$ 18 mil por mês da CBW. Zanelli é cunhado de Leitão e dono da Zoit Consultoria, a quem a CBW pagava R$ 9,8 mil mensais. Segundo a PF, as empresas não tinham empregados, eram cadastradas nas residências dos sócios, não tinham sede no Rio, onde fica a CBW, e tinham a confederação como única cliente.
"Evidências coletadas ao longo das investigações vêm corroborando a hipótese de que os contratos firmados com essas duas empresas eram fictícios e visavam unicamente justificar com uma aparência de legalidade a saída do dinheiro dos cofres da CBLA", diz o relatório.
Os emails, alguns deles exibidos nesta reportagem, mostram que a CBW pagava às consultorias, que lidavam diretamente com Leitão, e as empresas depois devolviam parte do dinheiro especialmente à arquiteta Tatiana Gama, esposa do presidente da confederação. Em diversas ocasiões, Ana Carla Leitão, esposa do superintendente, recolheu os valores, pelo que está dito nos emails.
Conversas explícitas
Em uma das mensagens obtidas pela PF, ainda em março de 2013, no que parece ser o começo do esquema, Beto diz a Doca (que ele chama de Kdó, ou Cadó, invertendo as sílabas do apelido do amigo) que já pagou Lino e que o presidente pode "fazer a retirada dos R$ 12 mil". "Fica com R$ 5 mil e guarda os R$ 7 mil para mim", escreve. A empresa de Lino recebia R$ 18 mil por mês da CBW.
Doca comemora: "Antes de mais nada: uhuuu. Entre nós, lembre-se: Lino, R$ 6 mil ao menos para cada um. Oswaldo, pelo menos R$ 2,5 mil para cada um. Se você achar que cabe mais, eu concordo", responde ele, usando letras maiúsculas para dizer que concordava com o aumento da cobrança.
Mais tarde, Beto apresenta as contas para explicar que não havia como cobrar mais de Oswaldo: "A nota é de R$ 18 mil. Os impostos montam 18%, retidos na fonte. Líquido R$ 14.760. Ele fica com R$ 500. Ele paga R$ 200 para o contador. Sobra R$ 14 mil. Antes era descontado R$ 900 (5%) de ISS, que agora não é mais. Sobravam R$ 13,6 mil, que dividido por dois dava R$ 6.500".
Mas o dinheiro demora a chegar nas mãos de Doca, e ele reclama com Beto: "Cara, precisaria muito do dinheiro que me falta receber... amanhã, de preferência de manhã. Lembrando: três meses do Oswaldo e [um mês do] Lino. Os dois primeiros dinheiros é muito importante que eu consiga pegar amanhã de manhã, para agilizar minha vida."
Leitão responde cinco minutos depois: "O OZ (Oswaldo Zanelli) acho que sem problema. Ainda não pagamos março a ele, mas dou minha parte de fevereiro para você e pego dobrado em março. Com o Lino será difícil amanhã de manhã".
Em junho, o pagamento da CBW às empresas atrasa, e Doca reclama: "Beto: nem o Oswald nem o Lino receberam o mês de maio, se é que você me entende. Isso está quebrando meu orçamento, irmão. Imagino que você também... que pagar cartão de crédito, empregadas, escola do (...), e dependo exclusivamente disso."
O funcionário que ninguém conhecia
Em email a Leitão no dia 19 de abril de 2013, Tatiana, esposa de Doca, cobrou que o salário de "Francisco" fosse pago até no máximo o dia 26 daquele mês, uma segunda-feira, porque ela havia agendado depósitos para pagar o aluguel do seu apartamento nos dias 29 e 30. E anexou os comprovantes dos depósitos, feitos da "conta origem" final 7090-1.
No dia 25 de abril, a CBW depositou o salário de R$ 10.294 na conta do "gerente geral de centro de treinamento" Francisco de Albuquerque Neto, exatamente na mesma conta final 7090-1. Para a Polícia Federal, Francisco é um funcionário fantasma, versão corroborada por diversos emails interceptados, que mostram que Doca era o intermediário entre a confederação e este empregado.
Doca e Francisco eram amigos de longa data, herdando uma amizade que começou com seus pais. Foi Francisco, conhecido no mundo as lutas como Toco Albuquerque, um famoso mestre de jiu-jitsu, quem formou Doca nesta modalidade até ele receber a faixa preta.
Ainda que tenha sido funcionário da CBW entre 2009 e 2015, outros empregados e atletas disseram à PF não conhecê-lo. Em depoimento à polícia, o gerente administrativo da confederação, Roberto Mannarelli Filho, disse que Francisco nunca foi à confederação, nem mesmo quando foi contratado, uma vez que Pedro Gama Filho levou os documentos necessários. Também era o presidente, segundo esse depoimento, que recebia os recibos de pagamento de Francisco e os devolvia assinados. Uma perícia apontou que as assinaturas dos contracheques não batem com as de Toco.
Em mensagens, Doca deixa claro que dependia dos pagamentos a Francisco. "Não se esqueça do Francisco e do dinheiro que ele tem que tirar. Desesperado", diz em uma das mensagens. Em outra: "Francisco já foi depositado, irmão?". Doca e Francisco alegam que, mesmo sem nunca ter sido visto na confederação ou feito reuniões com funcionários da entidade, Francisco de fato trabalhou para a CBW.
Outro lado
Procurado pela reportagem, Doca indicou o advogado José Marcelo Côrtes para comentar em seu nome e de sua esposa e ressaltou que não enriqueceu com o wrestling. "Até a elaboração do relatório final da Polícia Federal, mesmo após diversos requerimentos da defesa, o Sr. Pedro Gama Filho teve negado seu direito constitucional de obter o acesso integral à investigação, tendo sido indiciado indiretamente sem a oportunidade de esclarecer os fatos. Neste momento, a defesa se resguarda a utilizar os melhores argumentos em juízo", disse Côrtes.
Leitão indicou o advogado Roberto Tonini, que disse que não queria comentar o caso. Indicado por Toco Albuquerque, que não é réu no processo na Justiça, mas é citado no relatório, o advogado criminalista Paulo Klein disse: "A defesa técnica do Francisco Albuquerque esclarece que, conforme constou em seu depoimento, sempre prestou a consultoria para a referida instituição, negando de forma peremptória qualquer ilação de que tenha sido um funcionário fantasma, valendo ressaltar, inclusive, que não foi objeto da denúncia apresentada pelo MPF, o que confirma suas afirmações realizadas em sede policial."
A reportagem não conseguiu contato com Lino e Oswaldo. Procurado, Leitão não respondeu aos pedidos para intermediar um contato com seus parentes, que também são réus no processo. O texto será atualizado com o posicionamento de ambos, caso haja resposta.
A CBW afirmou que "passou ciência dos fatos descritos no Inquérito da Polícia Federal no momento em que seus dirigentes e funcionários foram intimados a depor na sede da Polícia Federal sobre diversos fatos". "A CBW colabora com as investigações e sempre se colocou à disposição, inclusive com corpo jurídico e fornecimento de informações e documentos com a finalidade de solucionar todas as questões envolvendo os supostos ilícitos cometidos".
A entidade disse ainda que não "emitirá juízo de valor sobre as investigações" quando questionada se Toco de fato trabalhou na confederação. "Por fim, a CBW colabora com a Polícia Federal e com o Ministério Público Federal e pugna pela solução e responsabilização de todos os envolvidos."
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