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Governo vetou bolsa a 11ª colocada em Tóquio ao saber de gravidez da atleta
O governo federal concedeu Bolsa Pódio para 349 esportistas em fevereiro, contemplando quem foi top 20 em Tóquio-2020 ou estava entre os 20 melhores do ranking de suas modalidades. Dentre todos os atletas que cumpriam os requisitos e enviaram a documentação a tempo, só uma ficou fora na época: Erica Sena, que brigou até os últimos metros por uma medalha olímpica na marcha atlética e terminou a disputa nos Jogos Olímpicos em 11º.
A razão é que Erica está grávida. No entendimento do governo, ela não poderia cumprir um plano intenso de treinamento, por causa da gravidez, e, por isso, não fazia jus ao benefício, que é um investimento do país em candidatos a medalha nos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, para aplicarem em treinamento.
Esse entendimento só mudou na quinta-feira passada, quando o governo cedeu aos argumentos apresentados em janeiro pelo Comitê Olímpico do Brasil (COB) e pela Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) e incluiu Erica no programa, com quatro meses de atraso, o que significa um desfalque financeiro, para ela, de R$ 44 mil. Só depois disso, na sexta-feira, a marchadora tornou pública a gravidez, que já está no oitavo mês.
O Bolsa Pódio é uma categoria do Bolsa Atleta, mas tem objetivo distinto do programa chefe, apoiando atletas que, no entender de uma comissão tríplice formada por Secretaria Especial do Esporte, COB (ou CPB, no caso dos paralímpicos) e confederação têm condições de disputar medalha nas próximas Olimpíadas e Paralimpíadas em provas individuais ou em duplas.
O critério mínimo para uma confederação indicar um atleta é que ele esteja entre os 20 melhores do mundo de sua prova. A partir daí, essa comissão avalia quem de fato tem chances de brigar pelo pódio. É, sem dúvida, o caso de Erica que, desde 2015, nunca havia terminado uma prova internacional fora das 10 primeiras colocações. O tabu caiu em Tóquio, quando ela entrou na reta de chegada em terceiro, mas foi punida com um pit stop e terminou em 11º.
Procurada, Erica não quis dar entrevista. Ela só falou sobre a gravidez em suas redes sociais, escrevendo que "se Deus quiser e permitir, chegará aos Jogos Olímpicos de Paris da melhor maneira possível e do jeito que gosta para brigar por uma medalha". A Secretaria Especial do Esporte não respondeu às questões enviadas pela reportagem.
Plano esportivo
Antes das reuniões para escolha dos beneficiados pelo atletismo, realizadas em janeiro, Erica Sena informou à Secretaria Especial do Esporte que estava grávida. E a reação da pasta foi vetar o benefício a ela, argumentando que o edital prevê a "participação em competições durante os próximos 12 meses", com a definição de metas para esses torneios. O edital, produzido pela própria secretaria, também cita que "a condição de saúde do atleta deve estar compatível com o cumprimento do Plano Esportivo".
Ainda assim, a lista de beneficiados, publicada em fevereiro, incluiu Fernando Saraiva (suspenso por doping desde julho e que já havia informado à ABCD em novembro que abria mão de se defender) e esportistas que estão sem competir desde os Jogos de Tóquio, como Maria Suelen Altheman, do judô, e Jaqueline Ferreira, do levantamento de peso, ambas machucadas. Historicamente, o governo não veta o benefício a atletas contundidos, por mais séria que seja a lesão. Rebeca Andrade, por exemplo, estava com o joelho operado quando recebeu a bolsa em dezembro de 2019.
O veto a uma atleta grávida é, pelo que levantou a reportagem, inédito. Talita Antunes, do vôlei de praia, por exemplo, estava grávida de sete meses quando foi beneficiada por um edital em agosto de 2018. Ela voltou a competir em novembro daquele ano.
A diferença, neste caso, é que a gravidez de Erica coincidiu com o edital e com a temporada internacional do atletismo. Ela já estava grávida no Campeonato Sul-Americano, que abriu o ano, em fevereiro, e, se tudo sair como planejado, terá um menino de menos de um mês em casa no Campeonato Mundial, em julho. A marchadora até poderia disputar os Jogos Sul-Americanos, em outubro, mas como não competiu no ano, não fará jus à convocação.
Impossibilitada de competir, ela apresentou seu plano de atividades para o governo, no início do ano, com alternativas para continuar em preparação visando objetivos futuros mesmo grávida. Erica mora no Equador, onde tem a companhia do marido, treinador e atleta olímpico equatoriano Andres Chocho. O objetivo era aplicar os recursos em preparação física e treinamento para voltar a competir o quanto antes e com menor perda de condição atlética.
A Secretaria não se convenceu e deixou a marchadora fora da lista publicada em fevereiro, sem apoio para investir nessa preparação. Em abril, porém, contemplou a marchadora com o Bolsa Atleta de R$ 3,1 mil, programa que não leva em consideração treinamentos futuros, apenas resultados passados —e aí vale o fato de Erica ter disputado a Olimpíada de Tóquio.
Na semana passada, a Secretaria voltou atrás e a incluiu no Bolsa Pódio, junto com três atletas que a Confederação Brasileira de Levantamento de Peso indicou em cima da hora, impossibilitando que fossem contemplados em fevereiro. Entre a argumentação da CBAt e do COB, em janeiro, e a concessão da Bolsa para Erica passaram-se cinco meses. Como comparação, a análise do corte de bolsa de Paulo André, do BBB, levou menos de duas semanas.
Para a especialista em direito esportivo Maria Gabriela Junqueira, o edital do Bolsa Pódio, exigindo a participação em competições, embasa a postura inicial do governo, de vetar o benefício a Erica, que não iria competir. Mas a advogada, que está grávida, argumenta que o edital deveria prever esse tipo de situação, de forma a beneficiar a atleta grávida.
"Acho que precisariam prever o caso de gestação durante o pedido da bolsa e talvez prorrogar no caso da gestação. Seria o melhor caminho. Essa é a grande questão, porque do jeito que está o edital tem base para negar", diz ela.
Gravidez no esporte
No ano passado, Maria Elisa, do vôlei de praia, protestou por ter perdido 25% de sua pontuação no ranking nacional e no internacional da modalidade por ter engravidado. Na época, a regra era congelar apenas 75% da pontuação da atleta que anunciasse gravidez. Sem dupla, nem se candidatou à Bolsa Pódio na ocasião.
A CBV e FIVB reagiram mudando o regulamento para congelar 100% dos pontos por 18 meses (no caso nacional) e 2 anos (no internacional), o que já beneficia a medalhista olímpica Ágatha, que anunciou gravidez em março. Assim como Erica, ela também não vai competir em 2022, mas não teve a bolsa questionada. E, quando voltar, poderá pleitear de novo o benefício porque continuará no topo do ranking.
No caso de Erica, ela recebeu tardiamente a Bolsa Pódio, após pressão do COB e da CBAt. Mas, se não voltar logo a competir para aparecer no ranking a tempo de estar entre as 20 primeiras do mundo quando um novo chamamento for feito pelo governo federal, o que deverá acontecer em novembro, não deverá ter direito a entrar no Bolsa Pódio do ano que vem. Até a semana passada, ela também tinha um contrato com a Caixa, intermediado pela CBAt, e que depende de resultados. Sem eles, deverá ser excluída da seleção permanente e perder este apoio.
Procurada, a CBAt elogiou o governo: "O Governo Federal foi sensível, teve bom senso e entendeu ser correta a manutenção da bolsa no programa Atleta Pódio", disse em nota, detalhando que o plano de treinamento foi adaptado às condições da atleta. A entidade negocia renovação de contrato com a Caixa.
Já o COB disse que "se posicionou a favor da manutenção da Bolsa do Governo Federal à atleta Erica Sena porque o plano de treinamento foi alterado e adequado às peculiaridades de uma gestante, garantindo o gradual retorno dela às competições de alto rendimento". A entidade não respondeu se trabalha para garantir que mulheres grávidas tenham o acesso a bolsas mantido durante a gravidez.
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