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Olhar Olímpico

REPORTAGEM

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Conheça o guia paralímpico que ocupará vaga de PA no 4x100m no Mundial

Jerusa Geber e Gabriel Garcia, medalhista de bronze nas Paralimpíadas - Miriam Jeske/CPB
Jerusa Geber e Gabriel Garcia, medalhista de bronze nas Paralimpíadas Imagem: Miriam Jeske/CPB

30/06/2022 04h00

A chegada da prova masculina dos 100 m rasos na final do Troféu Brasil neste mês teve duas novidades. De um lado, a ausência de Paulo André Camilo, campeão nos cinco anos anteriores, mas que este ano está se dedicando à vida de ex-BBB. De outro, o surpreendente quinto lugar de Gabriel Garcia, resultado que o classificou para ser o quinto homem do revezamento 4x100 m do Brasil no Mundial de Atletismo, ocupando a vaga aberta pela ausência de PA.

Surpreendente porque Gabriel não apenas não estava preparado para correr no nível que correu como ele nem sequer costuma participar de competições de 100 m. Não no masculino. Não no esporte convencional. Ele, que tem 24 anos, fez carreira como guia da corredora paralímpica cega Jerusa Geber. Juntos, eles foram campeões mundiais dos 100 m da classe T11 em 2019 e medalhistas de bronze nos 200 m dessa mesma classe nos Jogos Paralímpicos de Tóquio —no esporte paralímpico, o guia também é laureado.

Até uma semana atrás, Gabriel nunca havia sequer participado de um Troféu Brasil de Atletismo. Atleta de algum destaque nas categorias de base, da mesma geração de Paulo André, Derick Silva e Felipe Bardi, ele não teve as mesmas oportunidades que os colegas, contratados por grandes clubes. Assim, abraçou, em 2017, a chance de ser guia de Jerusa em Presidente Prudente (SP), cidade deles. Gabriel até competia individualmente aqui e ali, mas nunca com a dedicação dos rivais.

"Minha carreira foi limitada por eu não ter treinado bastante para o convencional. As competições paralímpicas batiam muito com as convencionais. Mas eu tinha essa vontade de voltar a correr sozinho, e a Jerusa e o Luiz [marido dela] começaram a me incentivar. Ela falou: 'Você faz seu treino, eu faço o meu, e quando tiver competição você vai comigo', contou ele à coluna.

Sem grandes expectativas, Gabriel correu uma prova em São Paulo em março e fez 10s43, índice para o Troféu Brasil. Mas aí veio uma lesão. "Comecei a sentir uma dor no menisco e tive que tratar para não machucar. Perdi semanas de treinamento. Faltando duas semanas, eu nem ia mais para o Troféu Brasil, mas pensei que era uma oportunidade que muitos sonhavam. O meu treinador tirou [dinheiro] do próprio bolso para eu estar no Rio competindo. Ele [Luiz] só falou assim: não vou te cobrar marca nenhuma, só se diverte. Você não está preparado".

Para quem não estava preparado, Gabriel foi muito bem no Engenhão. Mesmo correndo na série mais fraca, fez 10s36 nas eliminatórias e se classificou para a final. No intervalo de seis horas até a decisão, ouviu palavras de incentivo, sendo tocado pelo apoio do medalhista olímpico Bruno Lins. "Ele falou tantas palavras bonitas... um cara que eu era muito fã disse que era meu fã e queria ver eu brilhar".

E Gabriel brilhou. Sabendo que os cinco primeiros colocados pegariam vaga no Mundial, conseguiu terminar a prova exatamente em quinto, com 10s30, atrás de Felipe Bardi (10s13), Rodrigo Nascimento (10s13), Erik Cardoso (10s26) e Derick Silva (10s27). À sua frente, só três integrantes do time olímpico de Tóquio e o líder do ranking do ano passado (Erik).

"Teve muitos pontos da minha corrida que, se eu tivesse mais tempo de treinar, mostram que eu poderia fazer um resultado muito grande, muito ótimo. Estou começando a ter ritmo de competição agora. Eles estão em ritmo de competição, já é a sexta, sétima competição deles. A minha é segunda. Dá para eu fazer umas marcas ótimas. Esse 10s30 é um começo", aposta.

Gabriel Garcia, guia paralímpico, em Tóquio - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

Nova estrela

Quando entrou na categoria adulta, em 2018, Gabriel foi convidado a se naturalizar português, seguindo o caminho de João da Barreira. Contratado pelo Benfica, chegou a ser campeão português nos 60m rasos, prova indoor. Mas uma lesão o deixou de cama e veio o convite para que, quando melhorasse, voltasse a ser guia de Jerusa, como havia sido em 2017.

A recuperação foi muito mais rápida do que o esperado e, no segundo semestre, eles ganharam duas provas do Parapan, bateram o recorde mundial (11s85) e venceram o Campeonato Mundial. Os resultados credenciaram Jerusa para ser uma das estrelas do Brasil nas Paralimpíadas de Tóquio, favoritíssima ao ouro nos 100 m da classe T11.

Os dois, porém, viveram um dos momentos mais tristes e inexplicáveis dos Jogos. Os atletas cegos correm ligados aos guias por uma cordinha, presa na mão esquerda de um e na direita do outro. Esse objeto antes era produzido por cada time, mas passou a ser fornecido pelo Comitê Paralímpico Internacional (IPC), padronizado. Pela primeira e até agora única vez na história do esporte, essa cordinha rompeu. No meio da final paralímpica.

"Foi chocante porque a gente sabia que dando 100%, a gente só tinha que ganhar de nós mesmos. Foi como uma despedida de alguém que foi embora. Foi um negócio que, na hora, foi um momento de muita tensão. Ela não parava de chorar. Eu tentava fazer ela se reerguer para correr os 200 m, mas ela não queria nem pensar em correr. Eu falava: 'vamos tentar, vamos em busca'. E a gente conseguiu virar a chave."

Em Tóquio, ela, que já tinha três medalhas paralímpica, ganhou a quarta, um bronze, a primeira da carreira de Gabriel. Ele reconhece, porém, que os sentimentos do atleta e do guia são muito diferentes. "Como eu ganho medalha, é ótimo, maravilhoso, mas eu sou reconhecido como guia medalhista, não atleta. É como eu sempre digo: a estrela que brilha é sempre o atleta, o guia é a tomada que faz acender".

Agora ele quer ser a estrela. Na sexta, viaja para São Paulo para tirar às pressas o visto norte-americano. Na segunda, participa pela primeira vez de um camping com a seleção brasileira de atletismo para, na semana que vem, embarcar para seu primeiro Mundial. "Pode ter certeza que minha meta é Paris. E quero ir tanto como atleta convencional como sendo guia da Jerusa. Vou brigar muito. O Criador mostrou para mim que eu devo continuar seguindo que vai dar tudo certo".