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Olhar Olímpico

REPORTAGEM

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Isabel vivia mais um auge dentro e fora do vôlei antes de morrer

16/11/2022 16h38

Morta hoje (16), Isabel Salgado estava no auge. Mais um. Aos 62 anos, recebia uma avalanche de notícias positivas. No domingo, como mãe e ex-atleta, festejou que os filhos Pedro e Carol voltaram a dividir um pódio de etapa importante do Circuito Mundial de Vôlei de Praia. Na segunda, como profissional respeitada, teve seu nome anunciado no grupo de esporte da transição do governo Bolsonaro, que ela combateu, para o governo Lula, que ela ajudou a eleger.

No mesmo dia, depois de uma apresentação que arrancou aplausos dos executivos do outro lado da mesa, a mulher de vanguarda recebeu o tão esperado "sim" de um importante canal por assinatura para a produção de um projeto audiovisual autoral, o "Quantos anos você tem?". Em uma série de oito episódios, pretendia entender como outras mulheres como ela, de mais de 60 anos, estavam lidando com o novo momento da vida, em que não são mais "a primeira família dos seus filhos". Isabel mesmo seria a apresentadora.

"Ela estava super feliz, me ligou depois eufórica", contou a amiga Paula Barreto, produtora do programa. Mas Isabel sentia-se gripada. Em menos de 24 horas, estava internada com uma síndrome respiratória, em estado grave, no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, cidade onde estava exatamente por causa da reunião. Na madrugada desta quarta-feira, faleceu aos 62 anos, deixando um enorme legado para o esporte e para a sociedade.

"Ela mostrava que era possível ser mãe e atleta de alto rendimento, e ao mesmo tempo questionar situações que também eram refletidas na sociedade, como diferença de premiação, espaço no esporte, espaço na sociedade", avalia Adriana Behar, primeira CEO da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), duas vezes medalhista olímpica, e uma das tantas mulheres que se tornaram jogadoras de vôlei e/ou vôlei de praia inspiradas em Isabel.

Isabel Salgado em partida de volêi em 1991 - Folhapress - Folhapress
Isabel Salgado em partida de volêi em 1991
Imagem: Folhapress

Maria Isabel Salgado nasceu em uma família mais ligada à cultura do que ao esporte, em 1960. Conheceu o vôlei aos 11 anos, no Notre Dame, colégio de freiras só para meninas em Ipanema. Tinha tanto talento que no ano seguinte o técnico Ênio Figueiredo a incluiu na Kombi que ele levava diariamente à Gávea para formar o primeiro time mirim do Flamengo. Aos 16, já era titular do Rubro-negro, mas já não estudava no Notre Dame. Colecionadora de advertências, foi expulsa por discutir com uma professora.

Foi mãe antes mesmo de se tornar profissional. Foi na gravidez de Pilar, ainda na juventude, que descobriu que uma mulher pode, sim, ser mãe e atleta ao mesmo tempo. Voltou a tempo de jogar seu primeiro Mundial, em 1978, na primeira boa campanha da seleção feminina, e sua primeira Olimpíada, em Moscou, em 1980. Aos 20 anos, era, junto da amiga Jackie Silva, a grande estrela do time.

"Ela era fora de série. Top, top mesmo. Ela, Vera Mossa, Jaqueline, jogavam para cacete. Ela deixou um legado maravilhoso", avalia Bernard Rajzman, membro brasileiro do Comitê Olímpico Internacional (COI) e primeiro jogador brasileiro a atuar no exterior.

Isabel foi a segunda a sair do país, recomendada por Bernard para o time feminino do Modena, cidade onde ele jogava. Ela foi, e levou Pilar a tiracolo. "A minha mãe queria que eu deixasse a Pilar com ela porque achava que eu era muito nova e ela não poderia ir comigo. Essa hipótese para mim não existia e eu fui com a Pilar para Itália", contou Isabel em entrevista ao site Saque Viagem, em 2020. Em outra entrevista, para o livro Alta Na Ponta, contou que só no primeiro dia na Itália é que ligou um despertador pela primeira vez — até então, sempre havia alguém para acordá-la na vida confortável que vivia no Rio.

Mas ela optou por se aventurar jogando profissionalmente do outro lado do mundo, e com uma filha a tiracolo. "O esporte é um risco constante, você tem que performar, se não performar já era. E vai muito de como você lida com isso, essa pressão, essa postura de atleta profissional. Ela foi para Itália, levava os filhos, era muito intenso. Era uma personagem única", exalta Ana Moser, da geração mais diretamente inspirada por Isabel.

José Roberto Guimarães, técnico da seleção feminina, conheceu Isabel no Flamengo, foi contemporâneo dela como jogador na Itália, e depois foi seu treinador em São Caetano do Sul (SP). Para ele, a ex-jogadora era uma mulher à frente do seu tempo. "Sempre foi uma jogadora e uma mulher muito à frente de tudo. Ela foi precursora de atitudes, de posicionamentos. Desde que ela começou ela tinha muita atitude, muita postura, em termos de tudo que tava acontecendo no Brasil naquele período, e depois também. Ela sempre se preocupou muito com essas afirmações, essas coisas da mulher, da força, do empoderamento feminino", disse.

Ex-jogadora de vôlei Isabel Salgado - Reprodução/SporTV - Reprodução/SporTV
Imagem: Reprodução/SporTV

Muito ligada à cultura, sempre gostou de ir a shows, teatros, cinemas, e pretendia ficar morando na Europa e jogando pela seleção italiana se a CBV não tivesse voltado atrás de um gancho que ela tomou por indisciplina. Voltou para o Mundialito de 1982, no Ibirapuera, um torneio entre seleções transmitido ao vivo na TV e que deu enorme visibilidade ao vôlei feminino e às estrelas daquela equipe, especialmente Isabel, principal pontuadora e, o que era importante para a época, também uma mulher muito bonita.

Por toda uma década, Isabel conciliou carreira de atleta de alto rendimento, competições de grande porte, filhos pequenos, e três gestações. Maria Clara em 1983, Pedro em 1986 e Carol em 1987. Isso não impediu que ela disputasse os Jogos de Los Angeles, em 1984, e reclamasse publicamente de não ter tido uma chance de mostrar seu potencial para ser convocada para a Olimpíada de Seul, em 1988.

Não aceitava que o fato de ter quatro crianças fosse considerado impeditivo para que fizesse qualquer coisa no vôlei. Mas, após o nascimento de Pedro, teve as portas fechadas no Brasil, precisando recomeçar em um time pequeno da Itália. Quando voltou, foi para ser referência na equipe da Sadia, em São Paulo, repleto de garotas. "Naquele momento ninguém podia falar de quantos filhos eu tinha. Eu tinha voleibol", relembrou em entrevista ao livro Alta na Ponta.

"Eu aprendi muito com ela, essa coisa da postura de persona pública. Ela vinha do Flamengo, do Rio, da Globo, e sabia como ser essa pessoa pública, como sobreviver aparecendo desde muito cedo", conta Ana Moser. Em 1991, o time viria a ser campeão mundial interclubes, com um ataque histórico formado por Isabel, Ana Moser e Marcia Fu, abastecido pela então garota Fernanda Venturini.

Isabel ainda se tornaria rainha no vôlei japonês, atuando três temporadas no Toshiba, antes de ser precursora de um movimento de migração do vôlei de quadra para a areia. "Junto com a Jackie, ala abriu as portas para o vôlei de praia, levou para outro patamar, sempre lutando por uma igualdade. A gente passou por toda essa diferença de número de etapas, premiação, a gente sempre lutando para ter as mesmas coisas dos homens, ela sempre à frente disso tudo. Eu aprendi a brigar com ela. Isso de querer sempre o melhor para os atletas, para nossa modalidade", contou Shelda, duas vezes medalhista olímpica na areia.

Após jogar com Roseli e com Jackie Silva, Isabel teve a própria Shelda como parceira durante uma temporada, em 1995. "A gente saía do treino e ia para a casa dela. A Carol era mais nova, tinha 8 ou 9 anos, eu vi todos eles crescerem. Ela me acolheu. Ela era gigante, o coração e ela, uma mulher incrível, revolucionária, uma mulher à frente de tudo. Ela era gigante, coração maravilhoso, sempre tentando ajudar, fazer com que as coisas dessem certo, uma mulher muito justa", continuou Shelda, emocionada.

"Essa representatividade como atleta mulher nas quadras era incrível. Ela foi a primeira, corajosa, sem medo, vibrava, ia para bola, não interessava se estava perdendo ou ganhando. Mas também fora das quadras. Era de vanguarda mesmo, sabe? Rompia questões difíceis enquanto continuava sendo mãe, filha, irmã", complementa Adriana Behar.

Isabel Salgado com seu filhos: Pedro, Carol, Alisson, Maria Clara e Pilar (da dir. para esq) - Reprodução - Reprodução
Isabel Salgado ao lado dos filhos
Imagem: Reprodução

Mal parou de jogar e Isabel passou a trabalhar como treinadora. Comandou o time histórico do Vasco de 2000/2001, agora como técnica de Venturini e Marcia Fu, e cuidou pessoalmente da formação como jogadores dos seus três filhos que seguiram a carreira. Só títulos mundiais sub-21 foram três: em 2001 com Maria Clara, em 2004 e 2005 com Carol. Isabel, porém, dizia que não catequizou os filhos para serem atletas. Eles que escolheram assim.

De forma quase contínua, exceto nas pausas para terem bebê, Maria Clara e Carol jogaram juntas por mais de 10 anos, até 2015, sempre tendo Isabel como treinadora. Quando Carol ganhou as manchetes por uma declaração contra o presidente Jair Bolsonaro, em 2020, Isabel deixou claro quanto a postura combativa da filha tinha influência sua.

"Se minha filha tivesse feito apologia a torturador, eu estaria muito envergonhada e que bom que tem alguém querendo uma medida pedagógica. Me sinto muito orgulhosa dos meus filhos, da maneira com que eles lidam com a dor dos outros", afirmou Isabel, na época, ao Olhar Olímpico. "Tem um lado lamentável nesse julgamento, que é a frase que o atleta tem que saber que é o artista do espetáculo, mas não pode falar. Tá tudo ali, nessa fala. Você pode usar seu corpo, pode ser visto, mas não pode ser ouvido, não pode falar", ponderou.

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