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Olhar Olímpico

OPINIÃO

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Nem Richarlison justifica a hipervalorização do jogador de futebol

Richarlison comemora seu gol pela seleção brasileira na estreia da Copa, contra a Sérvia - NELSON ALMEIDA / AFP
Richarlison comemora seu gol pela seleção brasileira na estreia da Copa, contra a Sérvia Imagem: NELSON ALMEIDA / AFP

11/12/2022 11h01

Eu também sou da turma que ainda se vê matutando: "Por que foi atacar com sete aos 115 minutos, ganhando o jogo?". Mas, desde sexta-feira, vira a mexe também vem à minha cabeça um tuíte do governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB). "Nosso Estado nunca foi tão bem representado mundialmente. Richarlison, você é nosso orgulho", escreveu ele na sexta-feira à tarde.

Quem acompanha o meu trabalho sabe que, por mais que eu cubra esportes olímpicos (e sou apaixonado por eles), passo longe de ser Pacheco. Não sou dos que acha que se frustra por Isaquias, Ana Marcela e outros não terem a idolatria dos craques de cada clube, nem sou da turma que pensa, por exemplo, que esses campeonatos mundiais deveriam passar na TV aberta, como passa o Paulista de Futebol. Sei que a realidade do país não é essa, e não se muda de uma hora para outra.

Mas não entra na minha cabeça o tuíte de Renato Casagrande. "O Espírito Santo nunca foi tão bem representado mundialmente", escreveu o governador do estado de Alexandra Nascimento, que foi eleita a melhor jogadora do mundo de handebol, mesmo tendo nascido em um país sem nenhuma tradição na modalidade. E que resolveu isso levando esse país, o Brasil, ao título de campeão mundial — comparando com futebol, é algo como se Youssef En-Nesyri, nascido no Marrocos, levasse seu país a vencer a Copa e fosse eleito o Bola de Ouro da temporada.

Nunca foi tão bem representado mundialmente, o Espírito Santo de Alison Mamute, duas vezes campeão mundial de vôlei de praia, campeão olímpico na Rio-2016, e um dos 10 maiores da história desse esporte. O Espírito Santo de Larissa França, oito vezes campeã do circuito mundial de vôlei de praia. De Esquiva e Yamaguchi Falcão, irmãos que ganharam medalhas olímpicas no boxe em Londres-2012 e que sempre fizeram questão de levar a bandeira do Espírito Santo.

Levanto essa discussão não para pensar "qual é o maior atleta da história do Espírito Santo", um não-problema que só pertence aos capixabas. Mas para refletir quanto o Brasil — e a fala de um governador é exemplo claro disso — hipervaloriza o jogador de futebol.

Se a frase fosse: "Nunca o Espírito Santo teve tanta visibilidade no esporte", talvez fosse verdade. Richarlison foi o rosto da seleção brasileira na Copa do Mundo, evento esportivo mais importante para o país. Não há fator de comparação com handebol, vôlei de praia, ou mesmo com o boxe do popular Esquiva Falcão.

Mas a ideia é que um atleta que fez parte de uma campanha que parou nas quartas de final de um Mundial "representou melhor" o estado do que um atleta que foi campeão mundial. Um jogador que nem será cotado para entrar na lista dos melhores da competição "representou melhor" do que a jogadora que se tornou a melhor do mundo.

Só há um critério que leve a uma conclusão do tipo: o jogador de futebol é alguém superior ao atleta de qualquer outra modalidade. E essa ideia só é expressada pelo governador de um estado porque ele considera que também é assim que pensa a população.

É lógico que a competitividade futebol é maior que do handebol ou do vôlei de praia. No handebol, quando foi sede do Mundial masculino, o Qatar comprou um time inteiro e foi vice-campeão. Na Copa, terminou em último. Também é muito diferente o dinheiro envolvido em um ou outro esporte.

Mas não é justo o critério que determina que, para um jogador de futebol, basta fazer três gols em uma Copa para ser considerado um melhor representante do estado (ou do país, ou de qualquer coisa) do que alguém que foi campeã mundial, foi a melhor do mundo. E nem adianta argumentar que Richarlison é um cara acima da média — e é mesmo. Se o critério for esse, o prêmio deve ir para Larissa França, primeira grande atleta brasileira a se assumir lésbica, casar com outra mulher, e ter um filho.

Muito atleta 'olímpico' tem ranço do futebol porque sente que precisa se dedicar o dobro, o triplo, para ter 10% do reconhecimento de um jogador de futebol. Posturas como a do governador do Espírito Santo só ajudam a reforçar isso.