Brasileiras quebram tabu e se assumem mulheres trans na elite do atletismo
Dois sonhos concorrem um contra o outro dentro do coração e da mente de Jhenniffer Raissa Bueno. Quinta colocada do ranking nacional dos 3.000m com obstáculos, ela treina todos os dias para subir degraus, chegar à seleção brasileira de atletismo, à Olimpíada. Mas, enquanto se dedicar ao esporte, não poderá sentir-se uma mulher completa, seja do ponto de vista burocrático ou estético.
Jhenni é a quinta melhor brasileira da prova masculina dos 3.000m com obstáculos. Este ano, em decisão inédita, a World Athletics aceitou que ela, que já havia alterado o RG, passasse a ser listada no ranking mundial com o nome feminino que escolheu para si. Entre Camilos, Victors, Josés e Marcerlos, há uma Jhenniffer.
Logo ela não estará sozinha. Ásia Niara (na foto que abre a reportagem) já é tratada por este nome nas competições brasileiras de atletismo. Ainda que seus resultados continuem associados ao seu nome masculino, enquanto não inicia a alteração formal do RG, foi chamada por Ásia inclusive na transmissão do Troféu Brasil, exibido pelo UOL, quando foi sétima colocada do salto triplo masculino.
Em uma modalidade que, internacionalmente, já decidiu que não aceitará mulheres trans competindo na categoria feminina após terem a puberdade masculina, Ásia e Jhenni encaram tabus e preconceitos para se assumirem como mulheres mesmo competindo contra homens e sem quaisquer perspectivas de, um dia, estarem no feminino.
Jhenni, a precursora
Desde que chegou ao atletismo de alto rendimento, Jhenniffer é Jhenniffer, ainda que seu nome civil, que ela hoje prefere omitir, é que aparecesse em listas de largada, rankings e classificações. O auto reconhecimento como mulher trans veio quando ela ainda era um homem gay em segredo.
"Foi em 2017. Eu fazia faculdade, era um homem hetero cis, e comecei a andar com uma turma com gays e trans, eu ainda não era assumido. Fomos em um local, um bar, com outras pessoas trans, e ali foi meu gatilho, quando eu me identifiquei. Era sexta-feria, encontrei esse amigos no bar, montados, de peruca, e me identifiique. No outro dia, sábado, elas já me emprestaram peruca e já me montei também", conta.
A noite e o dia, porém, são muito distintos para uma corredora trans. Na balada, ela põe um vestido, arruma o cabelo, passa maquiagem, e entra no padrão de feminilidade. Quem olha para Jhenniffer vê uma mulher. De dia, com roupa de treinamento e cabelo preso, ela, que nunca passou por qualquer procedimento estético ou hormonal, é um corpo masculino, correndo entre os homens, mas com nome feminino.
"Pelo simples fato de não representarmos uma figura feminina nas competições, as pessoas não querem entender nossa identidade trans. Nos entendem como um homem gay que quer ser mulher. Eu não preciso competir com top, um shortinho, me maquiar, me desenhar uma figura feminina para ser uma mulher", justifica.
Se a testosterona em abundância dá vantagem competitiva a quem nasceu homem, o tratamento que bloqueia o hormônio age no sentido contrário. A atleta fica menos resistente, mais fraca e fraca. A consequência disso é óbvia: se iniciarem o bloqueio hormonal para ficarem mais "femininas", Jhennifer e Ásia terão resultados piores.
"Não é fácil viver com esses dois caminhos distintos. Quando eu estou bem, correndo muito, eu falo: 'Vamos nessa, está dando certo, seguimos'. Quando o rendimento cai, vem o desespero: 'Eu tô adiando algo que eu quero'. E quando isso acontece, a gente vai, recupera, e adia mais um tempo. Eu super quero me tornar uma mulher trans feminina no aspecto estético. Se eu colocar prótese, é mais fácil identificar como mulher. Mas meu rendimento vai cair. Então essa próxima etapa, só depois do esporte", diz Jhennifer.
A estética X o esporte
Enquanto o mundo esportivo discute até que ponto há vantagem competitiva para uma mulher trans, Ásia e Jhenniffer são personagens que poderiam ajudar a ciência e o esporte a entender como o corpo do atleta de alto rendimento nascido homem reage a um tratamento hormonal ao longo de anos.
Aos 26 anos, Ásia também nunca foi submetida a qualquer tratamento hormonal ou estético. A presença dela, porém, dificilmente passa despercebida. Em maio, foi vice-campeã paulista de salto triplo usando um lace (extensão capilar) rosa enorme, que ia até o bumbum, combinando com a sapatilha da mesma cor. No Troféu Brasil, a peruca era mais discreta, preta, mas as unhas e as pálpebras estavam pintadas de azul.
"Isso sempre foi uma coisa que se destacava na minha personalidade dentro do esporte. Sempre gostei de usar uma peça diferente, uma trança diferente. Gosto do meu cabelo, gosto de usar lace", diz ela, que passou a se assumir como mulher trans no começo de 2021.
Na época, a cantora Linn da Quebrada, uma mulher trans, tinha visibilidade nacional como integrante do mesmo BBB que projetou o velocista Paulo André. "Eu ainda estava no meu processo de aceitação e entendimento comigo mesma. O pessoal do meu grupo já me questionava, notavam meu desconforto, e perguntavam como eu preferia ser tratada. Foi ali, com a Lina no BBB, que eu decidi dar o start e pedir para me tratarem no pronome feminino".
Ásia ('a terra onde o sol se levanta') Niara ('aquela que tem grandes propósitos') foi o nome escolhido há um ano, e pelo qual ela passou a ser conhecida no atletismo, ainda que não tenha alterado sua documentação. "Eu inicialmente queria fazer na vida pós esporte, eu achava que seria melhor para lidar com tudo, mas estou repensando para ver se antecipo."
Paulista de Presidente Prudente, mas radicada em São Paulo, onde treina com o grupo de Nélio e Tânia Moura, ela ainda tem questões familiares a resolver. Acolhida pela campeã olímpica Maurren Maggi, madrinha e referência da equipe, não voltou para o interior desde que se assumiu mulher trans. As mulheres da família a aceitam como ela é, mas o pai ainda não.
"Não é uma questão simples você mudar o seu documento. Você tem que estar muito bem fisicamente e mentalmente, e eu ainda tenho questões a resolver", argumenta.
Mulheres no limbo
Ainda mais complexo do que mudar o nome e o gênero no RG é fazer a chamada retificação da certidão de nascimento. Isso apaga, do ponto de vista burocrático, a informação de que aquela mulher nasceu em um corpo masculino. Apaga também a possibilidade de ela competir entre os homens.
Isso coloca a mulher trans em um limbo dentro do atletismo. Impedida de competir entre as mulheres, por ter nascido homem, e impedida de competir entre os homens, por ser, legalmente, uma mulher.
Nem Jhennifer nem Ásia podem se dar ao luxo de deixarem de ser atletas. Temem "ter que viver como muitas trans e travestis vivem", em uma referência explícita à prostituição, alternativa que resta a parte da comunidade, que ainda tem muitas portas fechadas no mercado de trabalho e na sociedade.
No esporte, as duas têm resultados relevantes. Ásia foi vice-campeã brasileira correndo com o revezamento 4x100m e, este ano, terminou em sétimo o Troféu Brasil no salto triplo. Jhennifer, na atual temporada, foi prata na Copa Brasil de Fundo nos 3.000m com obstáculos, sua prova principal, e bronze nos 5.000m. Na primeira, é a atual quinta colocada do ranking nacional.
Para Jhennifer, porém, a temporada de atleta já acabou. No segundo semestre, quando as competições adultas rareiam, ela trabalha como árbitra da Federação Paulista de Atletismo em torneios de base e corridas de rua, especialmente na região de Campinas. Para ganhar um dinheirinho, também participa dessas provas de vez em quando. "Já corri de 5km a meia-maratona, mas não gosto muito de correr na rua, que tem as oscilações", diz ela, que não tem planos de virar maratonista.
Além disso, é estagiária de atletismo, basquete e alongamento na prefeitura de Campinas. Aluna de Educação Física, foi contratada com base exclusivamente no currículo, onde consta o nome Jhennifer, o gênero feminino, e suas qualificações.
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